Twitter: a rede da pornografia (pt. I)

Um mergulho na comunidade de “vendedoras de pack”

Por: Rachel Diaz
23, fev. de 2023 às 18:55
Twitter: a rede da pornografia (pt. I)

Por trás dos memes e das discussões políticas infindáveis, há no Twitter uma comunidade que, até agora, tem passado despercebida pela maioria da população. Inúmeros perfis exibem e vendem, abertamente, pornografia explícita na rede social que, em tese, exige idade mínima de 13 anos para a criação de conta e utilização. O conteúdo adulto só é proibido no Twitter em “áreas de maior abrangência”, como vídeos ao vivo, fotos de capa e perfil, segundo os termos de uso da rede social. Nas demais redes, como Facebook e Instagram, em que a idade mínima também é de 13 anos, o conteúdo adulto é proibido em qualquer contexto e local.


A pornografia rola solta no Twitter e a saturação do mercado tem feito com que as vendedoras precisem apelar para promoções e preços mais baixos para que o fluxo de vendas não seja afetado. Até mesmo conteúdos que, teoricamente, deveriam “valer mais”, por serem fetiches mais “extremos”, são vendidos por preços baixos: uma das garotas, que trabalha com algumas parafilias, vende vídeos com fetiche de fezes (scat) por valores entre R$ 25 e R$ 60 reais. Muitas não possuem renda fixa e sobrevivem da venda de conteúdo na plataforma. 


Durante 22 dias, Rachel Diaz, repórter de A Investigação, se disfarçou de uma destas produtoras e vendedoras de conteúdo adulto, monitorando e interagindo com modelos para revelar os bastidores deste do universo paralelo do Twitter, rede social que se tornou, nos últimos anos, o “paraíso” para produtores de conteúdo pornográfico. 



Corpos à venda


Embora o Twitter aceite o envio de fotos de pornografia explícita desde 2011, quando passou a aceitar upload de imagens, os serviços de venda de nudez proliferaram com a migração da comunidade “Not Safe For Work” (NSFW) -- em português "não seguro para o trabalho", gíria utilizada na internet para alertar para conteúdos impróprios para menores -- da rede de microblogs Tumblr, que proibiu, em 2018, veiculação de pornografia e nudez em sua plataforma. O estopim foram denúncias de veiculação de pornografia infantil, que provocaram a expulsão do Tumblr da App Store, serviço de distribuição de aplicativos móveis da Apple, até que a nova regra fosse implementada.

Equipes do Twitter, cientes deste tipo de conteúdo na plataforma, chegaram a cogitar implantar um sistema de assinaturas para competir com plataformas como o OnlyFans, Privacy e Fansly, que são utilizadas, entre outras coisas, para venda de conteúdo pornô. A ideia foi descartada após o Twitter detectar graves problemas envolvendo pornografia infantil, como já foi divulgado durante o caso “Twitter Files”.


A venda de pornografia no Twitter funciona de uma forma um pouco diferente do que no Onlyfans, apesar de o conteúdo ser o mesmo, por causa da ausência da ferramenta de assinatura. Assim, os criadores criam “pacotes” (chamados de ‘packs’ pela comunidade), contendo vídeos ou fotos eróticas, e vendem de forma avulsa via Pix para os interessados por valores que variam entre R$ 10 e R$ 50.


São vendidos packs de todo o tipo e para todos os gostos. Geralmente estes possuem alguma temática, podendo ter conteúdos mais “leves”, como o uso de fantasias, até temáticas mais pesadas, como performances envolvendo parafilias -- fetiches com fezes ou gases. Os conteúdos fetichistas são os que custam mais caro na plataforma – quando comparados aos preços dos demais “packs” –, variando entre R$ 15 e R$ 100, dependendo do formato do conteúdo e do que é performado.


Além dos “packs” de conteúdo adulto, algumas vendedoras também optam por realizar serviços de cunho pornográfico variados, como chamadas de vídeo, “sexting” (sexo virtual por mensagem de texto), e também “encontros” presenciais, que são, na realidade, programas sexuais. O preço dos encontros presenciais varia entre R$ 200 e R$ 500 reais, podendo haver acréscimos caso o cliente queira realizar algum fetiche.


Para divulgarem o seu material pornográfico pago, as modelos disponibilizam “amostras” de fotos e vídeos em suas contas do Twitter. Alguns destes são sinalizados como tendo conteúdo sensível de nudez e apenas são mostrados caso a pessoa queira vê-los, mas é preciso que o autor da publicação faça esta sinalização antes de postar. Na maioria dos casos as mulheres não mostram seu rosto, nem utilizam seu nome verdadeiro. 



Processo de verificação


Quem vende conteúdo na plataforma geralmente passa por um processo de “verificação”, que é realizado por outros produtores de conteúdo adulto e tem a finalidade de tornar o processo de vendas mais “seguro”, além de, supostamente, evitar a entrada de menores de idade no ramo. Não há muitas informações de como a verificação passou a ser uma espécie de “requisito” para a venda de packs no Twitter, porém, apuramos que isso tenha começado em meados de 2021, quando o nicho passou a se tornar mais conhecido por causa da popularização da venda de conteúdo adulto durante a pandemia. 


Plataformas como OnlyFans e Privacy realizam o processo de verificação para os criadores de conteúdo que possuem contas nos websites, mas é um processo mais lento e detalhado do que a verificação aplicada no Twitter. Alguns dos perfis optam por primeiro receber a verificação de outro criador de conteúdo para depois entrar com o processo de verificação nas outras plataformas. 


Há diversos verificadores no Twitter e cada um estabelece o próprio sistema de verificação. No total, entramos em contato com oito contas que indicam, em seus perfis, que fazem o trabalho de verificação de vendedoras de conteúdo. Até a finalização desta reportagem, apenas três responderam as mensagens enviadas pela conta que utilizamos para recolher as informações.


A principal verificadora neste nicho é Lina, de 24 anos, que também vende conteúdos no perfil @linafromsky e possuía cerca de 32 mil seguidores em sua antiga conta, que foi retirada do ar pelo Twitter, em dezembro de 2022, junto das contas de diversas outras vendedoras de pack. Na atual, Lina já possui mais de 3 mil seguidores. Lina, que em seus perfis pessoais -- onde utiliza seu nome verdadeiro -- apresenta um comportamento mais contido e sensível, assume dentro da comunidade uma postura mais agressiva e provocativa, tanto para poder conduzir o processo de verificação, quanto para realizar suas vendas e responder aos ataques que recebe ocasionalmente de outras vendedoras ou de clientes. 


As publicações do perfil de Lina no Twitter alternam entre conteúdo sexual explícito e “denúncias” contra mulheres que não foram verificadas por ela que, na maioria dos casos, são retiradas do ar na sequência. Em tweets em que vendedoras iniciantes perguntavam sobre a verificação, vários criadores de conteúdo classificaram Lina como “a verificadora mais confiável” da plataforma, além de outros também dizerem que preferem ser verificados apenas por Lina do que “perder tempo” buscando um processo de verificação em outras plataformas.


Acusações


Apesar de várias contas terem apontado Lina como “confiável”, muitos membros da comunidade afirmam que o processo de verificação da criadora é falho e que este já permitiu que contas falsas e menores de idade comercializassem conteúdo dentro da comunidade. Conversamos com uma produtora de conteúdo, que identificaremos aqui como Maria, que afirmou que Lina, além de não ser verificada, ainda persegue quem aponta as fragilidades e incoerências de seu processo.


“Todo mundo fala que ela é de confiança, mas ela mesma nem tem verificador e quando alguém aponta isso, ela começa a insultar. Pra mim, um ‘verificador de confiança’ tem que ter um histórico limpo e tratar as outras pessoas bem. Por exemplo, eu sou perseguida por ela e pela panelinha há meses por apontar esse tipo de comportamento. Isso não é nada profissional”, relatou. 


Maria relata que já conversou com várias mulheres menores de idade que foram aprovadas no processo de verificação de Lina. Além disso, Maria afirma que tem conhecimento de pessoas que, com a intenção de testar o processo de verificação, utilizaram contas falsas e foram aprovadas por Lina. 


Para descobrir como o processo de verificação funciona, nos disfarçamos de uma vendedora de conteúdo adulto iniciante que deseja vender seu conteúdo na plataforma. A primeira questionada sobre o processo foi a própria Lina, que apenas pediu que a menina lhe enviasse uma foto de sua carteira de identidade e, posteriormente, uma foto da “modelo” junto de um objeto que ela indicaria após a primeira etapa da verificação. Lina também explicou que um “verificador sério” jamais irá pedir uma chamada de vídeo, chamada de voz ou “packs” de graça em troca da verificação.


O segundo verificador que consultamos, que se identifica como “Homem Admirador”, foi no sentido contrário às orientações de Lina. O processo de verificação consiste, apenas, em realizar uma chamada de vídeo com a pessoa interessada na verificação; a adicionando posteriormente em uma lista pública de sua conta do Twitter. Questionamos por três vezes o verificador sobre como a chamada de vídeo funciona, em todas ele se recusou a prestar esclarecimentos sem primeiro ter acesso a fotos da candidata. 


Já a terceira conta que nos respondeu, que se identifica apenas como “Divulgador de Packs”, não deu detalhes sobre seu processo de verificação, mas disse que poderia divulgar o conteúdo de graça por se tratar de uma vendedora iniciante. Sobre valores de divulgação, o divulgador explicou que cobra R$ 3 por 10 compartilhamentos e R$ 5 por divulgação em plataformas de chat, que não foram informadas quais são.


Nenhum dos perfis contatados cobrou algum tipo de taxa para realizar o processo de verificação. Quando questionamos Lina sobre essa questão, através do perfil de vendedora de pack que criamos, ela afirmou que não cobrava e que “pagava com sua sanidade”. Nossa reportagem entrou em contato com Lina. Até a finalização desta reportagem não recebemos retorno.



Perigos


Com a explosão da popularidade do OnlyFans em 2020 por causa da pandemia de Covid-19, diversos veículos de mídia destacaram em reportagens o sucesso obtido pelas modelos que possuíam contas na plataforma. Entretanto, de acordo com algumas vendedoras de pack, esta visão é uma ilusão. Um dos perfis que monitoramos em nossa reportagem afirmou, em um de seus tweets, que não sabia se iria continuar a trabalhar com conteúdo adulto por ter pouco retorno financeiro. “Muito trabalho e pouco retorno. Eu ganho menos do que eu ganharia num emprego normal aqui”, expôs.


Já Lina, a principal verificadora da comunidade, também disse em seu perfil que a percepção de ganhos absurdos com a venda de conteúdo adulto não condiz com a realidade. “A galera jura que vai enriquecer com pack sem investir tempo, dinheiro e sanidade. Na maioria das vezes, não tem nem garantia de que você realmente vai ganhar alguma coisa”, afirmou.


Também encontramos alguns relatos sobre “administradores de contas”, que, em tese, ajudariam na divulgação do perfil da vendedora de conteúdo para gerar mais vendas. Uma das criadoras de conteúdo, que trataremos aqui como Fernanda, fez uma série de tweets falando sobre sua experiência e criticando quem se oferece para fazer o trabalho. “Esses caras se oferecendo para administrar vendedoras de conteúdo estão aparecendo cada vez mais. Parem de querer ganhar em cima do nosso trabalho, vão procurar um emprego”, disse.


Em outro tweet Fernanda alertou as iniciantes para que nunca enviem fotos ou conteúdos, mesmo para outras vendedoras, sem ter certeza de quem é a pessoa com quem está falando. Segundo ela, os administradores utilizam as contas das modelos para assediar. 


Entramos em contato com Fernanda, através da conta que utilizamos para fazer contato com os verificadores, falando que havíamos recebido uma proposta de um homem para que este pudesse administrar nossa conta. A criadora de conteúdo expôs sua visão sobre o assunto com mais detalhes.


“Eles pedem pra administrar pra se aproveitar da sua imagem e ganhar dinheiro em cima disso. Eles não gostam de você e não querem te ajudar, eles estão aqui unicamente para explorar sua imagem para se beneficiar disso. A partir do momento que você entrega para eles o seu conteúdo, eles fazem com ele o que bem entendem”, completou.


Segundo ela, a probabilidade do lucro obtido a partir do conteúdo que é entregue para o “administrador” ser repassado para a modelo é baixíssima, visto que não há como saber quantas vendas foram feitas e os lugares onde esse conteúdo foi divulgado. Para ela, por mais que os lucros fossem repassados, a modalidade continua sendo injusta por dar a entender que as mulheres que produzem conteúdo adulto não são capazes de administrar suas vendas e carreira sozinhas.


“A gente rala se expondo, ouvindo ofensas da família, sendo assediada, criando conteúdo e correndo o risco de algum cara querer fazer algo com a gente na rua pra alguém querer ganhar em cima da gente. Eles sempre agem como se soubessem mais que nós, é muito machismo”, conta.


Quando questionada sobre sua experiência pessoal com seu ex-administrador, Fernanda relatou que era proibida de conversar com outras vendedoras de conteúdo, além de não ter tido acesso ao armazenamento em nuvem de alguns de seus conteúdos. Ela diz também que foi hackeada pelo ex-administrador e teve sua imagem utilizada de forma indevida por ele.


Há também relatos de outras mulheres que não recebiam o lucro pela venda de seus conteúdos, que tiveram conteúdos vazados por ex-administradores e que também passaram por problemas gerados pela utilização indevida de suas imagens. Tais episódios não causaram apenas a falta de retorno financeiro para as criadoras de conteúdo, mas também geraram problemas com outras modelos do nicho e, em casos mais graves, com família, amigos próximos e pessoas que as conhecem pessoalmente.



Experiência


Dentre vários eventos que fizeram com que a repórter de A Investigação fosse confrontada com uma realidade até então distante da dela, o que mais chamou a atenção foram as mensagens enviadas para o perfil que estava sendo utilizado para a reportagem. A conta, que era fechada e não tinha mídias publicadas, recebeu diversas mensagens de “clientes em potencial” que desejavam adquirir conteúdo. 


Apesar de não ter recebido nenhum tipo de imagem invasiva nas mensagens diretas, Rachel se assustou pela conta, que não foi divulgada em nenhum lugar, ter recebido tantas solicitações. Alguns dos usuários que tentaram entrar em contato postam e reproduzem diversos tipos de pornografia hardcore; um deles chegou a postar, em seu perfil, que aceitaria “ameaças de estupro” em suas mensagens diretas.


Os 22 dias em contato com conteúdo pornográfico fizeram com que, ao longo do tempo, o sentimento de choque fosse substituído pelo sentimento de empatia às mulheres que se arriscam ao produzir esse tipo de conteúdo. Por mais que algumas gostem do que fazem, a realidade é que tudo que é publicado na internet permanecerá na rede para sempre; o que, com certeza, pode causar algum tipo de consequência grave, como exposição indevida, problemas com a família e diversos outros resultados que foram relatados pelas modelos.


Tais consequências podem ser ainda piores quando a modelo trabalha com conteúdos que são, de alguma forma, degradantes. O fato de muitos desses conteúdos serem vendidos por preços baixíssimos por causa da alta competitividade no nicho é entristecedor, visto que reflete o nível de degradação que a ausência de retorno financeiro pode causar a quem tem a venda de conteúdo como parte majoritária da renda. 


Há quem utilize o argumento de que os conteúdos comprados diretamente com as produtoras de conteúdo não financiam o mercado pornográfico, mas alguns dos conteúdos fetichistas que passaram a ser comercializados na plataforma mostram que a indústria pornográfica também dita o que será consumido e normalizado dentro dos pequenos nichos. Muitos dos conteúdos e serviços que encontramos sendo oferecidos na plataforma possuem ramificação na pornografia hardcore e, consequentemente, a normalização desse tipo de conteúdo pode gerar – a longo prazo – uma normalização de parafilias num geral. 


Comparada com as demais informações que puderam ser apuradas durante a investigação, a venda de packs deve ser a atividade envolvendo conteúdo adulto mais inofensiva da plataforma, visto que ela só ocorre por conta dos diversos furos presentes nos termos de uso do Twitter e é, em sua maioria, feita por maiores de idade. Em contrapartida, é perceptível que muitas das mulheres se iludiram com a fantasia do empoderamento e liberdade financeira que supostamente poderiam ser alcançadas com a venda de seus corpos. 


Para a repórter, no final das contas, talvez seja seguro argumentar que o "meu corpo, minhas regras", bandeira apoiada por feministas e até alguns homens, seja o verdadeiro vilão da luta feminina, travestindo a desvalorização da mulher e degradação moral como “liberdade” e, assim, fazendo com que mais mulheres se tornem frágeis para serem exploradas das mais variadas formas possíveis.


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