A passagem de um ciclone extratropical pelo Sul do Brasil no início de setembro deixou um saldo devastador: até agora, foram confirmadas 47 mortes e 46 pessoas estão desaparecidas. O fenômeno impactou 97 cidades e mais de 340 mil residentes. Em meio à calamidade, acusações e rumores envolvendo agentes públicos começaram a circular.
Uma das denúncias sugeria que comportas de hidrelétricas no Rio Grande do Sul teriam sido abertas, agravando as inundações. Além disso, boatos indicavam que o governo federal teria ordenado a centralização de todas as doações para as vítimas, com a distribuição prevista para ocorrer somente após o retorno do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de uma viagem à Índia, aparentemente para fins de autopromoção.
Entretanto, essas alegações foram rapidamente contestadas. Uma checagem do Estadão afirmou que as barragens não possuem comportas, logo estas não poderiam ter sido abertas. Esta afirmação, que aparecia logo no título, precisou ser corrigida, pois existem comportas, mas elas não teriam função de armazenar ou reter água.
Quanto às doações, o prefeito de Lajeado, Marcelo Caumo (MDB), afirmou que o volume de solidariedade foi tão grande que não há mais espaço para armazenamento de donativos na cidade. Assim, esses estão sendo redirecionados para Encantado, onde são organizados e enviados de acordo com as necessidades locais.
Perseguição estatal
Personalidades que inicialmente pediram investigações das autoridades sobre as alegações, como o jornalista Alexandre Garcia e a advogada Stefanny Papaiano, se tornaram alvos de ataques. A reação é vista como uma tentativa de reverter a imagem negativa gerada pela ausência de Lula durante a tragédia e sua viagem à Índia para a 18ª reunião de cúpula do G20, criticada até por apoiadores.
Garcia teceu comentários no programa “Oeste Sem Filtro”, no dia 8, onde pediu que autoridades apurassem a responsabilidade do governo no agravamento da enchente pois, embora a chuva tenha sido a causa original da tragédia, no governo petista foram construídas três pequenas represas que, aparentemente, abriram as comportas ao mesmo tempo. Por causa disso, Garcia se tornou alvo do Advogado-Geral da União (AGU) Jorge Messias, que dois dias depois, comunicou nas redes sociais que acionou a Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia (PNDD) contra o jornalista veterano por disseminação de informações falsas e uma “campanha de desinformação” sobre as chuvas no RS.
Messias — o “Bessias” da ligação entre Dilma e Lula, interceptada pela Lava Jato e publicizada pelo então juiz Sérgio Moro, que levaria o termo de posse para que Lula pudesse assumir um ministério e garantir o sonhado foro privilegiado — utilizou para este comunicado o link de uma notícia produzida pelo Diário do Centro do Mundo, blog chapa-branca que já foi identificado diversas vezes como produtor de notícias falsas.
Criada por decreto no início do governo Lula com o propósito de atuar "para resposta e enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas”, a PNDD, que já está no seu quarto mês de atividades, tem sido criticada por ser utilizada como instrumento de perseguição a opositores do governo. Esta função lembra o "Ministério da Verdade" do livro "1984" de George Orwell, obra distópica em que verdade e falsidade são determinadas pelo Estado.
Em fevereiro, o deputado Mendonça Filho (UNIÃO-PE) propôs um Decreto Legislativo para suspender a criação da PNDD na estrutura da AGU. Para o deputado, a procuradoria teria sido criada com o pretexto de promover o enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas, mas poderia servir de fundamento para a censura dos oposicionistas do governo.
Esta visão é compartilhada por Patricia Lages, colunista do R7 e escritora, que crê que a subordinação da PNDD à AGU coloca em xeque a sua imparcialmente contra a desinformação, pois a a AGU tem como função principal defender os interesses do Estado, não da população. Assim, qualquer crítica ou conteúdo visto como desfavorável ao governo pode ser rotulado como desinformação, desviando o foco da proteção da sociedade para a proteção do próprio governo.
O jornal O Globo também sofreu ataques de petistas após publicar uma reportagem criticando a postura do AGU. Mas o que mais irritou os petistas foi a comparação que fez com as atitudes do governo Jair Bolsonaro, o que para eles seria uma falsa equivalência. Para o advogado Hugo Freitas, se há falsa equivalência, é em benefício de Lula, pois Bolsonaro não teria usado a AGU para perseguir críticos.
“Esse ponto é importante porque, ao se perder a distinção entre as formas como Lula e Bolsonaro usaram a AGU, você perde a capacidade de reconhecer e denunciar a coisa mais acintosa do novo governo, que é criar um órgão cuja função literal é a persecução judicial de quem ataca a imagem do governo. [...] Se isso não é motivo de denúncia, nada é. Feche-se a imprensa”, escreveu no Twitter.
Em outro tuíte, Freitas afirmou que governo Lula se apropriou da AGU para transformá-la no seu próprio Ministério Público paralelo para a persecução criminal dos críticos do governo. Segundo ele, isso começou nas invasões do 8 de janeiro, quando a AGU teria usurpado o papel do MP e pediu prisões. Para Freitas, o governo Lula repete no Executivo o que já estava sendo realizado no Judiciário, quando o STF “escanteou” o Ministério Público e assumiu o papel deste para si próprio, para a investigação dos seus críticos.
Outro que entrou na briga foi o ministro da Justiça, Flávio Dino, que afirmou no Twitter que "fake news é crime e não instrumento de luta política" e que a Polícia Federal já tem conhecimento dos fatos e adotará as providências previstas em lei. A publicação foi sinalizada pelas Notas da Comunidade do Twitter pois disseminar fake news não é crime no Brasil, ao contrário do que afirmou o ministro. A nota foi retirada posteriormente por motivo não divulgado.
Em entrevista à Gazeta do Povo, Alessandro Chiarottino, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP), afirma que a perseguição legal a Alexandre Garcia é inconstitucional. Ele destaca que "fake news" não é um tipo penal no Brasil e que crimes como injúria, calúnia ou difamação não se aplicam ao caso. Além disso, ele critica o uso da AGU para perseguir um jornalista e adversário político, ressaltando que esta deveria servir o interesse institucional da União, e não a defesa do governo.
Bots e MAVs
Embora a advogada e comentarista política Stefanny Papaiano tenha divulgado os esclarecimentos sobre o caso das doações, ela foi alvo de uma campanha massiva de militantes petistas conhecidos como MAVs (Militância em Ambiente Virtual do PT). O ataque começou após uma publicação do jornalista Leandro de Demori, ex-The Intercept e recentemente contratado pela EBC, que incentivou seus seguidores a denunciar a conta de Papaiano. Na sequência, houve uma série de ataques coordenados por robôs à advogada.
O canal Visão Pátria notou que os perfis envolvidos nos ataques a Papaiano exibiram comportamento automatizado, incluindo mensagens idênticas e nomes e fotos de perfil similares. Dezenas desses bots publicaram mensagens pedindo a prisão de várias figuras públicas: além de Papaiano e Garcia, exigiam que o deputado federal Gustavo Gayer e Jair Bolsonaro fossem presos e a chave fosse “jogada fora”.
Nas publicações também marcaram as arrobas do ministro Flávio Dino, do deputado Rogério Correia (PT-MG) , e dos senadores Randolfe Rodrigues (Sem partido) e Gleisi Hoffmann (PT). Também marcaram integrantes da imprensa que tem atuado como se fossem assessoria de imprensa do PT: a CNN, os jornalistas Octavio Guedes, Daniela Lima, Andréia Sadi e Reinaldo Azevedo.
Para executar o ataque, esses perfis enviaram tuítes de teste simultaneamente, como "TESTE1 ERRO1" e "TESTE1 ERRO2". Em publicações anteriores os perfis engajaram em campanhas em massa pedindo a prisão de Bolsonaro, do senador Sérgio Moro (União) e do ex-procurador Deltan Dallagnol; também em campanhas em defesa de Lula e na divulgação de publicações do presidente. Todos os perfis foram criados em junho deste ano e estão fora do ar no momento da publicação desta reportagem.
Nesta terça-feira (12) Papaiano publicou um vídeo no Twitter na companhia do ex-deputado estadual Douglas Garcia (Republicanos-SP) anunciando que foi até uma delegacia realizar um boletim de ocorrência por assédio e violência política e psicológica contra mulher, além de difamação, calúnia e denunciação caluniosa.
Durante as últimas eleições, diversos perfis engajaram uma campanha de difamação para associar Bolsonaro ao satanismo com o objetivo de atrair o voto evangélico para Lula. Entre eles estavam diversos perfis falsos, cujas imagens de perfil eram geradas por Inteligência Artificial. Entre os envolvidos na campanha estavam os perfis de fofoca e cultura pop Choquei, PopTime, PopOnze, QG do Pop e Fórum Pandlr.
Também participaram da campanha de assassinato de reputação os influenciadoras Bic Müller e Babi Magalhães, o deputado federal André Janones (Avante-MG) e o grupo de extrema-esquerda Boca de Lobo. Nenhum foi indiciado ou processado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) presidido pelo ministro Alexandre de Moraes.
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