A deputada Gleisi Hoffmann, presidente do PT, tem muito o que explicar. Até agora, dos mais de 182 milhões de vacinados contra a Covid-19 no Brasil, pouco menos de 60% tomaram a terceira dose, a do reforço. Uma quantidade ainda menor de pessoas tomou mais doses do que isso. Mas, segundo o sistema de controle de vacinação do SUS, ninguém no Brasil tomou tantas vacinas contra a Covid-19 quanto Gleisi, que possui registro de recebimento de dez doses do imunizante da Pfizer.
Se forem seguidos os prazos mínimos recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) a todas as pessoas com 12 anos ou mais — 4 a 8 semanas entre a primeira e segunda dose, e 4 a 6 meses de dose de reforço após a conclusão da série primária — uma pessoa, com idade avançada e comorbidades, no máximo deveria ter tomado sete doses até agora. Com 57 anos de idade e, ao que consta, sem comorbidades, Gleisi Hoffmann não se encaixa nesses critérios. No Distrito Federal, a quantia máxima são seis doses, segundo a Secretaria de Saúde.
Segundo informações verificadas por A Investigação com mais de uma fonte, que terão seu sigilo preservado, as dez doses de vacina da Pfizer teriam sido administradas entre 25 de junho de 2021 e 22 de setembro de 2022. Além disso, foram administradas em três locais diferentes: a Policlínica do Lago Sul e a UBS Asa Sul, em Brasília, e o AME, em Campinas. Em 18 de setembro de 2022, Gleisi teria se vacinado em um domingo, data incomum para a vacinação. Além disso, um ano antes, em 22 de setembro de 2021, Gleisi teria se vacinado em um ambulatório médico em Campinas. Neste dia, Gleisi registrava presença no plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília, a mais de 900 quilômetros de distância. Confira aqui nove dos dez comprovantes de vacinação.
Há nos cartões de vacinação da deputada petista uma série de datas incongruentes. Em duas ocasiões as doses foram administradas com apenas 4 dias de diferença da anterior, e uma outra com 12 dias de diferença, algo que, certamente, poderia ter sido notado pela parlamentar, através do sistema ConnectSUS, ou pelo aplicador da vacina.
Em junho de 2021, o cadastro no SUS da deputada foi erroneamente cancelado, impedindo-a de tomar a segunda dose da vacina. Ela constava no sistema como "morta" e, além disso, aparecia com o apelido de "Bolsonaro", denotando vandalismo. O deputado Alexandre Padilha (PT-SP), ministro da Saúde na gestão da ex-presidente Dilma Rousseff, que auxiliou Gleisi com esta questão, recordou na ocasião de ataques hackers sofridos pela pasta em 2019, além do vazamento de dados de pelo menos 16 milhões de brasileiros que tiveram diagnóstico suspeito ou confirmado de Covid-19, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Diante deste cenário, surgem algumas perguntas: ao tomar a primeira dose da vacina, em 26 de junho de 2021, o seu cadastro já não constaria como “morta”? Se isso for verdade, a aplicadora da vacina não deveria tê-la impedido de tomar a dose? Outro ponto importante, Gleisi realmente tomou estas doses? Se sim, qual a justificativa? Se não, quem fez a inserção incorreta dos dados, pessoas mal-intencionadas ou pessoas ligadas à deputada? No caso de vandalismo, uma nova modificação indevida no sistema não geraria suspeitas?
Há também outro fato curioso. Gleisi faz parte do grupo de políticos que fez questão de tirar diversas fotos ao se vacinar para sinalizar virtude nas redes sociais. Mas não há um só registro das — supostas — dez doses recebidas pela deputada petista.
Possíveis crimes
Se comprovado que a deputada Gleisi Hoffmann tomou dez doses da vacina contra a Covid-19, o que implicaria em furar a fila de vacinação, ela poderá ser enquadrada em até 14 diferentes tipos de crimes, conforme nota técnica do Ministério Público de Pernambuco, de janeiro de 2021. Esses crimes, cuja lista completa pode ser encontrada ao final da reportagem, incluem peculato, corrupção, abuso de autoridade, concussão, crimes contra a fé pública, como o caso de uso de documentos falsos, condescendência criminosa e outros.
Para a advogada Amanda Costa, especialista em Direito Médico, este caso deve ser analisado minuciosamente e abre um leque para todos esses possíveis crimes. Segundo ela, se houve apropriação de vacina em proveito próprio ou para terceiros, valendo-se a pessoa de cargo público, ela poderá responder por peculato conforme o Art. 312 do Código Penal.
“Precisa-se abrir uma investigação para averiguar o que de fato aconteceu, pois o crime de inserção de dados falsos em sistema poderia ter sido feito por terceiros ou mesmo a pedido da própria pessoa. Visto ainda que a pessoa em questão pode também ser vítima de toda essa situação”, diz.
Entretanto, se Hoffmann não recebeu as vacinas, mas inseriu dados falsos no sistema, ela poderá ser acusada de fraude nos dados de vacinação. Este cenário assemelha-se ao que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) enfrenta atualmente. Bolsonaro, que é alvo da Operação Venire, da Polícia Federal, está sendo investigado por possíveis fraudes em seu cartão de vacinação e no cartão da sua filha. Essa investigação resultou na prisão do coronel Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro. Em maio, Hoffmann manifestou fortemente seu apoio a esta investigação, afirmando que este seria só mais um dos crimes do” genocida”. Fica implícito que a parlamentar é a favor de investigações neste sentido. Como a que deverá ser realizada a partir do que estamos revelando nesta reportagem.
O único cenário em que Gleisi não figura como autora, mas como vítima, é o de pessoa externa ter invadido o sistema e modificado os dados, possibilidade que automaticamente podemos estender a Bolsonaro. Entretanto, mesmo nesta situação, não há como a deputada alegar não ter ciência do que consta registrado nos seus cartões de vacinação. Segundo uma das fontes consultadas por A Investigação, já em 2022 a deputada estava registrada com nove doses. E, se Gleisi já sabia, por que não revelou a inconsistência, como quando revelou que teria sido “assassinada” nos registros do SUS quando foi receber a sua segunda dose de vacina?
Possíveis efeitos colaterais
Segundo o médico infectologista Francisco Cardoso, na hipótese de uma pessoa ter tomado dez doses de vacina contra a Covid-19, especificamente as da Pfizer, de mRNA, as consequências seriam imprevisíveis. Há, por exemplo, a possibilidade de evolução para o aumento de risco de eventos adversos graves, como trombose ou miocardite.
O infectologista alerta que um excesso grande de estímulo imunológico em um prazo curto pode levar ao fenômeno de “imprinting imunológico” e a um “esgotamento clonal”, fazendo com que a pessoa não tenha anticorpos suficientes para montar uma resposta. “Podemos chegar a um ponto em que a vacina causaria uma 'covid vacinal'. É por isso que não aplicamos tantas doses em pouco tempo”, afirma.
Cardoso explicou mais detalhadamente o que é o fenômeno de imprinting imunológico: "Quando você recebe uma estimulação imunológica muito forte de um tipo específico de antígeno, o sistema imune tende a memorizar aquele anticorpo a ser fabricado. Quando você é exposto a antígenos diferentes, mesmo que modificados, o sistema imune reconhece que é o vírus, mas não percebe que é um vírus diferente. Ele então fabrica os anticorpos antigos para o antígeno novo", diz o médico.
O que dizem os envolvidos
A Secretaria de Saúde do Distrito Federal nos enviou nota esclarecendo que uma pessoa adulta poderia ter tomado até o momento no máximo cinco doses. Mas, se for pessoa imunossuprimida, poderia ter tomado uma dose adicional, sendo 6 doses no total. Sobre as vacinas aplicadas em datas próximas, a Secretaria afirma que pode ter ocorrido erro de registro ou pode ser erro de imunização. Para que não ocorram estes erros, no momento da triagem do usuário para a vacinação, são verificados o documento de identificação, o cartão de vacinas e o sistema de informação novo Programa Nacional de Imunizações (SI-PNI). Se já houver um registro anterior, o sistema emite um alerta informando que há um erro, e no caso de constatar o erro de imunização, esse é notificado no sistema e-SUS notifica.
“No DF, o cadastro é feito através do novo SI-PNI, sistema nacional preconizado pelo Ministério da Saúde. Ao cadastrar a vacina, se houver inconformidade, como já haver o registro da dose, o sistema emite alerta informando haver um erro. Ainda, na aba de busca do usuário, é possível acessar o espelho do cartão do indivíduo, no qual constam as vacinas registradas no sistema de informação, tanto do DF quanto dos demais estados”, informa a nota.
Para acessar o novo SI-PNI é necessário ter login e senha, feitos no sistema de permissão de acessos do Ministério da Saúde, chamado Sistema de Cadastro e Permissão de Acesso (SCPA), e ter cadastro autorizado para algum perfil de operação. A pasta salienta que, para esse sistema, existem vários perfis. Todos os perfis que acessam o novo SI-PNI conseguem fazer a busca do usuário e assim pesquisar quais foram as vacinas registradas, além de informação de data de aplicação, lote, estabelecimento de saúde. Somente o perfil de “operador de estabelecimento de saúde campanha” é habilitado para fazer o registro das vacinas contra covid-19 no sistema.
Em resposta às perguntas sobre o sistema de cadastro de vacinação, o Ministério da Saúde informou que o procedimento para inserção de dados depende da rotina de trabalho de cada estabelecimento de saúde. A pasta também afirma que o SI-PNI segue as normas de segurança estabelecidas pelo Departamento de Informática do SUS (DATASUS).
“O SI-PNI é responsável pelo registro dos imunizantes aplicados e do quantitativo populacional vacinado, agregando dados por faixa etária, em determinado período de tempo, em uma área geográfica. Isso também possibilita o controle do estoque de imunizantes, auxiliando os administradores na programação de sua aquisição e distribuição”, informou.
O ministério esclareceu também que a dose administrada em qualquer estabelecimento de saúde será contabilizada para o município informado no Cadastro do Sistema Único de Saúde (CADSUS), de acordo com a nota informativa SEI/MS - 0018517270. Ou seja, o que constará no registro será o local onde a pessoa recebeu a vacina.
Por fim, o ministério indicou que, embora não seja responsabilidade do Departamento de Programa Nacional de Imunizações (DPNI), quaisquer suspeitas de irregularidades devem ser denunciadas à Ouvidoria do SUS, através do Disque Saúde, no número 136.
Entramos em contato com a assessoria da deputada Gleisi Hoffmann através do seu email institutuional e do contato de Whatsapp disponibilizado em seu site, mas até o momento da publicação desta reportagem não obtivemos resposta. Seguiremos à disposição para os devidos esclarecimentos.
Lista de possíveis crimes por “furar fila” segundo o MP-PE:
Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/2019, art. 33, parágrafo único), caracterizado quando agentes públicos que não se encontram no rol de pessoas a serem vacinadas se valem do cargo ou função para se vacinar indevidamente;
Concussão (CP, art. 316), quando alguém invoca seu cargo ou função para que seja descumprida a ordem de vacinação;
Condescendência Criminosa (CP, art. 320), quando o funcionário público, por complacência, deixa de adotar as providências necessárias em relação às infrações cometidas;
Corrupção Passiva (CP, art 317) quando há a recepção de caráter pecuniário ou vantagem indevida para desobedecer a ordem de prioridade do Plano de Vacinação;
Corrupção Passiva Privilegiada (CP, artigo 317, § 2º) em que o funcionário público, atendendo a uma solicitação de uma pessoa amiga ou por influência de terceiros, desobedece a lista de prioridades do plano de vacinação;
Prevaricação (CP, art. 319) em situação que o servidor ou funcionário público que tem gestão sobre a dispensação da vacina se auto administra dose ou determina ser vacinado por interesse pessoal;
Corrupção Ativa (CP, art. 333) quando pessoa física promete vantagem indevida para que lhe seja ministrada a vacina;
Peculato (CP, art. 312) aplicado aos casos em que se desvie doses de vacina para venda à rede particular ou ao mercado paralelo ou até mesmo subtraia doses da vacina, valendo-se das facilidades do cargo;
Crime de Responsabilidade de Prefeito (art. 1º, do Decreto-Lei n.º 201/1967) quando a pessoa que desvia ou se apropria das vacinas é prefeito ou ele se utiliza do cargo para beneficiar pessoas ligadas à ele;
Dano qualificado (CP, art. 163, parágrafo único, III) se alguém inutilizar a vacina por ser contrário à campanha;
Furto, Roubo e Receptação (CP, artigos 155, 157 e 180) quando houver subtração de vacinas atentando, assim, contra a segurança de serviço de utilidade pública, não cabendo conduta culposa, uma vez que as vacinas são bens públicos;
Falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (CP, art. 273), quando o agente falsifica vacinas independente do intuito lucrativo, caracterizado como crime hediondo. Havendo dolo o agente responderá por homicídio doloso, já se houver lesão o agente responderá por lesão corporal;
Infração de medida sanitária preventiva (CP, art. 268) quando a pessoa ao furar a fila de vacinação tem plena ciência do descumprimento de medida sanitária;
Dos Crimes contra a Fé Pública como, por exemplo, a falsidade de atestado médico (CP, art. 302); certidão ou atestado ideologicamente falso (CP, art. No 301); a falsidade material de atestado ou certidão (CP, art. 301, §1º e 2º); o uso de documento falso (CP, art. 304); falsidade ideológica (CP, art. 299); falsificação de documento público (CP, art. 297).
Deixe sua opinião!
Assine agora e comente nesta matéria com benefícos exclusivos.
Sem comentários
Seja o primeiro a comentar nesta matéria!
Carregando...