Moraes vota pela liberação da maconha usando estudo questionável

STF avança contra poder o Legislativo e recebe críticas por apoiar-se em estudo com problemas metodológicos,

Por: Leandro Souza
24, ago. de 2023 às 18:47
Moraes vota pela liberação da maconha usando estudo questionável
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

O Supremo Tribunal Federal (STF) prossegue com o chamado “julgamento da maconha”, processo que estava parado desde 2015 e no momento se encontra com 5 votos a 1 pela descriminalização do porte da droga no país. O ministro Gilmar Mendes, relator do processo, inicialmente propôs a liberação de todas as drogas; os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Alexandre de Moraes, entretanto, sugeriram a aplicação apenas à maconha.

A principal fonte utilizada por Moraes durante o seu voto, no início de agosto, foi um estudo realizado pela Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), ONG de um grupo de pesquisadores oriundos da Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que conclui que jovens, negros e analfabetos são mais frequentemente classificados como traficantes, mesmo quando pegos com menos drogas do que pessoas mais velhas, brancas e com ensino superior.

"Triplicou-se em seis anos o número de presos por tráfico de drogas, mas não triplicamos o número de presos brancos, com mais de 30 anos e ensino superior, e sim o de pretos e pardos sem instrução e jovens. É preciso garantir a aplicação isonômica da Lei de Drogas para evitar que, em virtude de nível de instrução, idade, condição econômica e cor da pele você possa portar mais ou menos maconha", afirmou o ministro. 

No entanto, o relatório da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), que avalia a política de drogas em São Paulo, utilizando dados de 2002 a 2016, é marcado por várias inconsistências metodológicas, como a classificação de etnia dos suspeitos. Caso haja pelo menos algum preto ou pardo entre um grupo de suspeitos abordados pela polícia, o grupo todo é classificado como “Negro”. Caso não haja nenhum preto ou pardo, o grupo é  classificado como “Branco”. Há ainda a categoria “Outros”, mas o termo não é definido pelos autores. 

Para tentar justificar sua proposta de descriminalização, os autores trazem resultados de outros países, mas não detalham os resultados das políticas adotadas, caracterizando saltos lógicos questionáveis. Por exemplo, a discussão sobre os impactos na Austrália não explora as razões por trás das divergentes conclusões dos estudos no país. Quando abordam a Califórnia, mencionam informações sobre tratamento, conclusão e reincidência, mas falham em estabelecer uma conexão clara entre as mudanças na lei e esses resultados.

O texto defende a adoção de critérios objetivos para distinguir usuários e traficantes para evitar ações arbitrárias da polícia. Contudo, o estudo cria ambiguidade quanto a esses critérios, sugerindo que sua aplicação pode resultar em distorções, como criminalizar usuários ou ser indulgente com traficantes. Além disso, o texto menciona possíveis impactos diferentes em grupos específicos, como mulheres em prisões, mas não conecta essa ideia claramente à discussão sobre critérios objetivos, deixando sem explicação o efeito sobre esse grupo particular.

Em relação ao impacto da lei atual, o estudo se contradiz. A princípio, afirma que, de modo geral, não houve aumento significativo nas apreensões por porte nem redução nas apreensões por tráfico em São Paulo após sua implementação. No entanto, revela que, na capital do estado, as apreensões por tráfico cresceram em 50%, enquanto as apreensões por porte diminuíram consideravelmente, sem reconciliar essas duas observações.

Ao embasar seu voto no relatório da ABJ, o ministro estendeu o estudo para todo o país. Entretanto, a análise dos autores se limitou ao estado de São Paulo e concluiu que os resultados dependem da localidade. Não é a primeira vez que o Moraes enfrenta questionamentos sobre a robustez de suas fontes. No caso do "Radiolão", de 2022, Moraes utilizou como base para arquivar a denúncia da campanha de Jair Bolsonaro (PL) um estudo com falhas metodológicas e análise superficial. As conclusões do estudo foram posteriormente refutadas por A Investigação em uma checagem dos áudios liberados à época.

Problemas de metodologia

O doutor em Matemática e professor do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo, Daniel Victor Tausk, expressou preocupações com os resultados, alegando que eles não são suficientemente precisos. Ele destaca que o parâmetro usado para medir o impacto da lei faz com que"haja uma tendência de cidades maiores terem um impacto aparente maior, pelo critério adotado". 

Na discussão sobre os impactos da Lei 11.343, sancionada em 2006, o relatório defende o uso de critérios objetivos para distinguir porte e tráfico de drogas, mas Tausk encontra falhas na argumentação: “Eu acho esse parágrafo forçado. A conclusão da necessidade de critérios objetivos vem de que em alguns lugares aumentou, em outros diminuiu".

O relatório esperava que a nova lei, sendo mais progressista, reduziria as prisões em casos de drogas, mas constatou um aumento. A ABJ acredita que isso ocorre porque a polícia se recusa a aplicar a lei de forma mais liberal, enquadrando mais casos como tráfico ao invés de uso. A análise, no entanto, contradiz-se ao afirmar que a decisão final é do juiz, não da polícia.

STF avança contra outros poderes

Em uma série de decisões controversas, os ministros do STF têm adotado uma postura que alguns críticos classificam como uma forma de usurpar o poder do Congresso Nacional, alegando a omissão do Legislativo em regular ou criar leis sobre determinados temas. Sob a justificativa de "mudança de entendimento" de leis existentes, a mais alta corte judiciária do país tem criado legislações que deveriam ser de competência exclusiva do Poder Legislativo.

No "julgamento da maconha", o STF age para tomar a frente da discussão sobre a legalização do entorpecente no país. No entanto, essa não é a primeira vez em que o tribunal se intromete nas atribuições dos outros poderes, como quando o STF reconheceu a união homoafetiva, permitiu o registro civil para transgêneros e reconheceu a multiparentalidade, entre outros temas sensíveis. Em alguns casos o STF utilizou estudos problemáticos para embasar as decisões. Durante o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, entre fevereiro e junho de 2019, em que a maioria dos ministros do STF equiparou homofobia e transfobia ao racismo, foi utilizada como argumento a fake news de que o Brasil é o país que mais mata gays no mundo. 

Agora, quando estendem esta equiparação aos transsexuais, os ministros foram criticados por utilizar a terminologia “LGBTQI+”, pois esta seria genérica e poderia ser ampliada infinitamente. No Twitter, o advogado Hugo Freitas, Mestre em Direito pela UFMG, explicou que STF feriu o Princípio da Taxatividade, estabelecido no Direito Penal, que determina que a definição do que é proibido deve ser clara e sem ambiguidade.

“Não pode falar ‘É proibido X e também outras coisas que eu pensar depois’, o que seria dar ao Estado o poder de prender pessoas conforme os caprichos do momento. Isso é algo incontroverso, aprendido no primeiro ano de direito. O princípio da taxatividade é o oposto diametral do que o sinal de ‘+’ significa. Ele está lá para indicar rol aberto, que é o oposto de rol taxativo”, escreveu.

Já no Executivo, o STF impediu o Presidente de nomear o diretor da Polícia Federal, impôs a exigência do passaporte da vacina e até mesmo assumiu funções da polícia e do Ministério Público ao abrir de ofício o polêmico "inquérito do fim do mundo", em que a própria corte atuou simultaneamente como vítima, investigadora e juíza.

A Corte já demonstrou interesse em avançar ainda mais em sua atuação. A ministra Rosa Weber manifestou o desejo de decidir sobre a questão do aborto antes de sua aposentadoria, em outubro, o que poderia significar um novo passo rumo à consolidação do tribunal como o Poder Supremo da República. Com o voto do ministro Alexandre de Moraes, em favor da ampliação dos poderes do tribunal, cresce a preocupação de que o STF esteja se arvorando no papel de legislador, que deveria ser exclusivo do Congresso Nacional, e assumindo funções executivas, que são reservadas ao Presidente do país.

Curiosamente, enquanto era ministro da Justiça no governo Temer, Moraes era conhecido por suas ações firmes contra o tráfico e no combate ao uso de entorpecentes, chegando a protagonizar um vídeo, gravado em uma operação transnacional no Paraguai, destruindo plantações de maconha com um “facão”. Seis anos após assumir a vaga de Teori Zavascki no STF, Alexandre de Moraes, além de votar pela liberação da maconha, deu declarações que lhe renderam o jocoso apelido de “sommelier de bagulho” nas redes sociais: “No Brasil, a droga é a mais batizada que existe no mundo, seja maconha, seja cocaína. É droga de menor qualidade”, criticando o nível de pureza das substâncias consumidas no país. 

"Nossos cidadãos estão expostos a riscos ainda maiores, não apenas devido à quantidade e ao tipo de droga consumida, mas também devido à qualidade questionável das substâncias que circulam em nosso mercado", enfatizou o ministro, que acompanhou de perto os estudos da ABJ e se encontrou ao menos duas vezes com os participantes da pesquisa. 

O que dizem os envolvidos

Até o momento da publicação desta reportagem nossa equipe não obteve retorno da ABJ e da assessoria de imprensa do STF. O espaço seguirá aberto para os devidos

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