Reportagem: David Ágape, Leandro Souza e Rachel Diaz Quanto um minuto a mais podendo discursar a seus potenciais eleitores pode fazer diferença em uma eleição? Agora, imagine diversas horas a mais, na decisão de uma das eleições mais disputadas das últimas décadas? Este é o roteiro do chamado Radiolão, uma denúncia feita pela campanha à reeleição do presidente Jair Messias Bolsonaro (PL), que alegou estar recebendo menos inserções de rádio do que seu oponente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em rádios das regiões Norte e Nordeste, no segundo turno das eleições de 2022.
A denúncia, encabeçada pelo ministro de comunicações Fábio Faria e pelo coordenador da campanha de Bolsonaro, Fabio Wajngarten, foi endereçada ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e tinha o objetivo de buscar paridade no final do pleito eleitoral — faltavam 6 dias para a votação. Segundo relatório da empresa Audiency, contratada pela campanha de Bolsonaro para auditar as inserções de rádio da campanha, o presidente teria tido, entre os dias sete a 14 de outubro, cerca de 154 mil inserções a menos do que seu oponente.
Em 30 de novembro, ao participar da audiência pública sobre as inserções de propaganda eleitoral, realizada na Comissão de Transparência, Fiscalização e Controle do Senado Federal, Fabio Wajngarten declarou que a auditoria contratada pela campanha do PL identificou cerca de 1,2 milhão de inserções não veiculadas. De acordo com o próprio Wajngarten, em uma estimativa realista de R$ 30 por inserção, o valor corresponderia a R$ 38 milhões, o equivalente a metade do fundo eleitoral do partido.
Ao ter conhecimento da denúncia, o presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, além de alegar que a ação não havia apresentado “provas e/ou documentos sérios” para embasar a acusação, chamando-os de “supostos” e “apócrifos”, deu prazo de 24 horas para a apresentação de documentos que comprovassem a tese levantada pela campanha de Bolsonaro.
Assim, antes do término do prazo, a equipe de Bolsonaro apresentou uma série de supostas provas da discrepância nas inserções: um relatório com os resultados da auditoria, amostras de áudios de rádios e diversos documentos. Os materiais, armazenados em um repositório de arquivos online, disponibilizados não apenas para o tribunal, mas também para o público, se espalharam rapidamente pela internet, e não demorou para a hashtag “#Radiolão” conquistar o topo dos Trending Topics do Twitter.
Mesmo assim, Moraes novamente ignorou os dados da auditoria e arquivou a denúncia tendo como base o resultado obtido pelo engenheiro de áudio Miguel Freitas, professor do departamento de Telecomunicações da PUC/RJ, que utilizou dados levantados pelo perfil apócrifo do Twitter @desmentindobozo e realizou a checagem com o auxílio de um script de programação em linguagem Python. Na decisão, Moraes afirmou que “os erros e inconsistências apresentados nessa ‘pequena amostragem de oito rádios’ são patentes, tanto que foram constatados rapidamente no estudo realizado por Miguel Freitas”, classificando também a análise como “direta e certeira”.
A checagem da auditoria
Ao invés de optar pelo processo automatizado de checagem para chegar em resultados da forma mais rápida possível — e de analisar questionamentos não verificáveis contra a denúncia de Bolsonaro, como a de que a análise da Audiency se deu por meio de captação de áudios de rádios transmitidas via streaming, o que invalidaria a sua auditoria — A Investigação, um projeto de jornalismo colaborativo, multidisciplinar e apartidário, fundado e coordenado pelo jornalista investigativo David Ágape, embarcou no desafio de checar manualmente as 168 horas de arquivos de áudio disponibilizados pela auditoria.
Através de análise focada em uma questão palpável e factível, buscou-se responder a seguinte pergunta: afinal, com base nos arquivos disponibilizados, o método da Audiency seria eficaz para auditorias? Até que ponto a denúncia de que há discrepâncias entre as inserções do PT e do PT se sustentaria? Os resultados obtidos pela força-tarefa foram contundentes:
PT teve 53 minutos e 30 segundos a mais que o PL, somados os sete dias de programação das sete rádios analisadas pela A Investigação;
O método automatizado utilizado pela Audiency, ao contrário do que foi afirmado pelo ministro do TSE, se mostrou viável para a realização de auditorias, com uma grande precisão em comparação com a audição humana;
Constatamos também graves falhas na metodologia e nos resultados obtidos pelo professor Miguel Freitas, algo que pode ter induzido Moraes a erro em sua decisão de arquivar a denúncia e posterior investigação sobre a discrepância nas inserções nas rádios.
Após a publicação do relatório, em 6/11, nenhuma contestação foi realizada sobre este, apenas um ataque hacker de grandes proporções com o objetivo de derrubar o site d’A Investigação. Ao longo das tentativas, os sistemas de proteção detectaram o uso de bots, acesso de usuários anônimos em massa e ataques do tipo DDoS. A maioria destas tentativas vieram dos Estados Unidos, mas também foram identificados ataques da Alemanha, Portugal e outros países da Europa.
Análise dos resultados
Após definir que o material seria analisado de forma manual, a equipe de A Investigação se dividiu em dois grupos: Equipe Técnica e Equipe de Checagem, que possuíam funções distintas, mas complementares. A Equipe de Checagem ficou responsável por escutar os áudios, realizando a checagem e a rechecagem do material, enquanto a Equipe Técnica recebia os dados obtidos através de formulários e adicionava as informações em planilhas para que estas pudessem ser “tratadas” da melhor forma possível.
A metodologia consistiu-se em organizar os dados dos spots reproduzidos nas rádios, onde a Equipe Técnica separou as campanhas para governador das campanhas presidenciais, verificou informações de data e horário, agrupou os áudios por coligação e filtrou os Horários Eleitorais Obrigatórios — que no segundo turno ocorrem sempre das 7:00 às 7:10 e das 12:00 às 12:10, com 5 minutos para cada — para evitar resultados falso-positivos, visto que não constam no Plano de Mídia das Inserções que foi divulgado no site do TSE. Por fim, os técnicos realizaram o cruzamento destas informações com os dados disponibilizados pela Justiça Eleitoral e confeccionaram o infográfico para que o público geral pudesse compreender os dados que seriam apresentados.
O relatório de A Investigação concluiu que, ao longo das 168 horas de programação que foram analisadas, as inserções do PL contabilizaram apenas 23 minutos e 30 segundos da programação total, enquanto que as inserções do PT foram veiculadas de forma considerável, chegando aos 77 minutos — cerca de 227,66% a mais do que o PL. A diferença de tempo entre os dois partidos foi de 53 minutos e 30 segundos — em sete dias das sete rádios disponibilizadas para análise Para ilustrar, como o tempo de discurso pode ser fundamental para marcar a mente das pessoas e criar legados:
O recorde mundial em apneia estática, em que o mergulhador apenas submerge sua cabeça dentro de uma piscina, é do espanhol Aleix Segura, de 36 anos. Em 2016, ele conseguiu ficar 24 minutos e 3,45 segundos submerso após inalar oxigênio puro;
Mas, se Segura tentasse segurar por mais tempo a respiração, provavelmente seu coração pararia. Se a parada cardíaca passasse de 53 minutos, tempo máximo que geralmente se tenta uma reanimação após uma parada cardiopulmonar, a equipe de socorro desistiria de reanimá-lo e Segura não estaria aqui para contar história;
Em se tratando de discurso político, o histórico “Eu tenho um Sonho”, feito pelo pastor Martin Luther King Jr., em agosto de 1963, falando da necessidade de união e coexistência harmoniosa entre negros e brancos, que lhe rendeu o título de Homem do Ano pela Time e um Nobel da Paz em 1964, teve apenas 17 minutos de duração, mas tem influenciado a humanidade por gerações;
Um dos maiores influenciados por King foi o ex-presidente americano Barack Obama, que se despediu do povo e de sua administração, em 2017, com um longo discurso de 51 minutos de duração;
E, por fim, o álbum de estréia da banda Guns’n Roses, Appetite for Destruction, lançado em 1987, possui exatamente 53 minutos e 49 segundos de duração, mesmo tempo que PT teve a mais que o PL para discursar nas sete rádios analisadas pela A Investigação somados os sete dias. É tido como um dos melhores álbuns de rock de todos os tempos, e até hoje influencia gerações, com canções como "Sweet Child O' Mine", "Welcome To The Jungle" e "Paradise City".
Quando comparados, o resultado da checagem independente apresenta cinco inserções para o PT a menos do que o relatório da Audiency, que encontrou 112 inserções a mais para o partido — totalizando 238,30% — enquanto o relatório de A Investigação encontrou 107. Apesar dos números da checagem automatizada serem similares aos números da checagem manual, o uso da audição humana para verificar as informações mostrou-se útil para a identificação de falso-positivos e eventuais falhas técnicas na programação das rádios.
Os resultados encontrados por A Investigação, por meio da análise das sete rádios disponibilizadas na época da denúncia, sugerem que o trabalho realizado pela Audiency confirma o apresentado pela dupla Wajngarten e Faria; entretanto, resta dúvidas sobre a natureza dessa amostra, considerando que não há como saber se foi escolhida aleatoriamente ou se foram escolhidos os piores casos identificados pela auditoria.
O caso Bispa
A Rádio Bispa é um caso particular que destacamos dos outros pois torna claro que houve erros nas análises dos relatórios da Audiency pois, mesmo que a auditoria tenha encontrado nesta rádio apenas 13 inserções do PL, enquanto A investigação encontrou 37 — e a análise feita pelo professor Miguel Freitas tenha encontrado nove —, esta se mostrou com quase 100% de assertividade.
Isto ocorreu por um erro da Rádio Bispa, e não da Audiency, que captou corretamente o sinal: a rádio inseriu incorretamente 24 inserções do PL correspondentes ao primeiro turno na programação do dia 11/10, além de 13 inserções corretas correspondentes ao segundo turno do PL. Entretanto, nesta data já nos encontrávamos em campanha de segundo turno. Assim, a Audiency, que emprega sistema automatizado e, utilizando os Spots do segundo turno enviados pelos partidos e devidamente disponibilizados pelo TSE, os procurou corretamente na programação e os encontrou como planejado.
Já o professor Miguel Freitas utilizou um recorte do próprio arquivo disponibilizado pela Audiency para fazer a sua busca — pudemos perceber assim que estudamos seu processo, pois no final do Spot há a transição de volta à programação da rádio — e não o arquivo oficial disponibilizado no site do TSE, procurando dois áudios do primeiro turno, provavelmente sem saber. Desta forma, foram encontradas apenas 9 ocorrências.
Mas, se este áudio não constava no plano de mídia e nem na referência de checagem cruzada buscada pela auditoria, não foi procurado nem poderia ter sido contabilizado como correto, uma vez que não é o "anúncio" solicitado. Por exemplo, se eu comprar 22 Laranjas, e você me mandar 13 laranjas e 9 maçãs, não posso considerar as maçãs como produtos que solicitei.
O erro cometido pela Rádio Bispa foi apresentado no estudo feito pelo professor Miguel Freitas como a “prova” de que o relatório da Audiency era inconsistente e, portanto, não deveria ser considerado como “auditoria”. Assim, uma conclusão errônea foi utilizada como base pelo ministro Alexandre de Moraes para arquivar uma denúncia legítima feita pela campanha de Bolsonaro.
Não satisfeito, o ministro remeteu – de ofício – à Procuradoria-Geral Eleitoral para a apuração de “possível cometimento de crime eleitoral com a finalidade de tumultuar o segundo turno do pleito” e à Corregedoria-Geral Eleitoral, para instauração de procedimento administrativo sobre eventual “desvio de finalidade na utilização de recursos do Fundo Partidário dos autores”. Além disso, Moraes determinou a inclusão integral e imediata da denúncia no famigerado Inquérito 4874 em curso STF, conhecido como Inquérito das Milícias Digitais, surgido após o arquivamento do Inquérito dos Atos Antidemocráticos.
O que dizem os envolvidos
Procurada por nossa reportagem, a Audiency, através de seu CEO Anacleto Ortigara, declarou que, por questões de cláusulas contratuais de confidencialidade, ainda não pode se manifestar sobre o teor e forma do trabalho realizado e entregue ao contratante.
Até o momento, Fabio Wajngarten não retornou nossos contatos e pedidos de informação.
Aviso: O estudo feito por A Investigação abrange, apenas, os arquivos da programação veiculada em sete rádios durante o período de uma semana, que foram disponibilizados pela Audiency. A equipe não teve acesso a outros dados, portanto, não é possível fazer conclusões sobre os demais períodos de tempo analisados pela auditoria. Os dados citados por Wajngarten durante a audiência pública não fazem parte da checagem d’A Investigação, pois não foram disponibilizados para a análise.
Acesse aqui para conferir todos os materiais da investigação do Radiolão na íntegra. Em caso de possível correção de dados, elogios, críticas ou sugestões, envie um email para: [email protected].
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