Quem é a "bruxa" citada na Vaza Toga
Jornalista Letícia Sallorenzo atua como "colaboradora informal" do TSE desde 2022
Em agosto deste ano, uma série de reportagens da Folha de S.Paulo, assinadas por Fábio Serapião e Glenn Greenwald, revelou um esquema de monitoramento paralelo conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Nas mensagens de WhatsApp, obtidas pelos jornalistas, Moraes ordenava que sua equipe, da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED), Airton Vieira e Eduardo Tagliaferro, produzissem relatórios informais sobre críticos do TSE e do Supremo Tribunal Federal (STF).
As informações coletadas eram enviadas diretamente ao gabinete do ministro e fundamentavam decisões do Inquérito das Fake News. Essas medidas incluíam bloqueios em redes sociais, quebras de sigilo bancário e até o cancelamento de passaportes.
Embora Greenwald tenha indicado que novas revelações podem estar a caminho, muitas questões sobre a Vaza Toga ainda permanecem. Entre elas, uma figura enigmática: a “Bruxa”, mencionada por Tagliaferro em um dos diálogos vazados.
Em uma das reportagens mais recentes, publicada em 19 de agosto de 2024, a Folha revelou que Moraes acionou o AEED para monitorar bolsonaristas que xingaram ministros do STF em Nova York. Em um trecho, Vieira compartilha com Tagliaferro postagens do cantor gospel Davi Sacer, que convocava protestos contra os ministros.
"Eduardo, esses aí também, por favor coloque no relatório também. Para fins de bloqueio”, escreveu o juiz Airton Vieira.
Tagliaferro, entretanto, ponderou: “Dr. Airton, não sei se é uma boa ir para cima do Davi Sacer... vai revelar católicos e evangélicos, como também outros cantores. Não seria melhor esperar um pouco? A bruxa não tem esse bom senso, é totalmente partidária sem pensar nas consequências.”
Airton Vieira informou, em resposta, que o pedido havia partido de Moraes. "O problema é que foi o Ministro quem passou. Depois recebi pelo Deputado Frota…", disse o juiz instrutor, completando: "Paciência. Vamos em frente."
A referência a essa “bruxa” gerou especulações: alguns acreditaram que poderia ser a ministra Carmen Lúcia, outros que poderia ser a primeira-dama Janja, ou ainda a deputada Carla Zambelli. A realidade, no entanto, é que a “bruxa” estava à vista o tempo todo, embora atuando nas sombras como "assessora paralela" do TSE sob a direção de Alexandre de Moraes.
Quem é a “bruxa”?
Letícia Sallorenzo, jornalista e linguista de Brasília, é a “bruxa” que se apresenta abertamente assim nas redes. Conhecida no X pelo perfil @bruxaOD, sua bio exalta Alexandre de Moraes: “Passando pano para Alexandre de Moraes desde junho de 2021; tiete de Flavio Dino desde dezembro de 2022. Na rede social BlueSky sua bio é “Ninguém fala mal de Alexandre de Moraes na minha frente! Nem Alexandre de Moraes!”.
Letícia utiliza como avatar nas suas redes sociais uma imagem que reforça sua persona: uma ilustração de uma bruxa idosa e carrancuda, retirada da personagem Cudi Ampola, da série de animação de humor negro e adulto Fudêncio e Seus Amigos, da MTV Brasil. Curiosamente, a personagem Cudi Ampola é uma professora dura que favorece um aluno calvo enquanto trata os demais alunos com desprezo e severidade.
Em 2012, durante a presidência da petista Dilma Rousseff, Letícia Sallorenzo teve uma breve passagem na Casa Civil da Presidência da República. Letícia foi nomeada para o cargo comissionado de Assessor Técnico na Subchefia de Articulação e Monitoramento da Casa Civil, sob a chefia da ministra Gleisi Hoffmann. No entanto, em 17 de setembro do mesmo ano, ela solicitou exoneração da função, encerrando sua atuação no órgão.
Em 2020, Letícia participou como palestrante no Curso de Formação “Para Entender a Realidade Brasileira e Pensar o Futuro”, organizado por militantes do PT em Portugal. O curso, realizado em formato virtual, reuniu pensadores e figuras políticas para discutir a conjuntura social, econômica e política do Brasil. Letícia ministrou sobre “Militância Digital”, ao lado da jornalista Laura Capriglione, oferecendo sua perspectiva sobre o papel das redes sociais na organização e mobilização de militantes.
Firehosing
Letícia é mestre em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB) e jornalista formada pela UFRJ, além de autora do livro “Gramática da Manipulação”, no qual explora técnicas de comunicação e persuasão na mídia. Em 30 de outubro de 2024, Letícia apresentou a qualificação de seu projeto de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Linguística da UnB, intitulado “FROM THE HEART DOWN: Firehosing, Linguística Cognitiva e os ataques do Gabinete do Ódio contra Alexandre de Moraes”.
A pesquisa explora o conceito de firehosing, termo que significa literalmente “disparar com mangueira de incêndio.” Esse conceito sugere uma estratégia de manipulação da informação que consiste em inundar o ambiente com conteúdos, sejam eles verdadeiros ou falsos, de forma massiva e repetitiva. O objetivo não seria necessariamente convencer, mas saturar o espaço informacional a ponto de tornar difícil para o público distinguir o que é verdadeiro do que é falso.
Na tese, Letícia justifica que essa estratégia é altamente eficaz em um "ecossistema de desinformação" e diretamente relacionada aos ataques a Moraes, que seria alvo de uma “estratégia coordenada” de desinformação que visa desestabilizar o Judiciário e desacreditar suas ações.
No resumo do projeto, Letícia afirma que a teoria do firehosing serviu “como base para toda a argumentação jurídica que levou ao pedido de prisão do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos”. Além disso, afirma também que firehosing é um processo descrito em documentos do Supremo Tribunal Federal nos inquéritos das Fake News e dos Atos Antidemocráticos.
O conceito de firehosing é relativamente novo, introduzido em 2016 pela RAND Corporation, um think tank americano especializado em pesquisa e análise de políticas públicas, com forte histórico de colaboração com o governo dos EUA, especialmente o Departamento de Defesa. Fundada em 1948 para oferecer estudos estratégicos para as Forças Armadas, a RAND é financiada por várias agências governamentais, organizações internacionais, fundações e o setor privado.
Em 2023, a RAND Corporation recebeu cerca de US$ 396 milhões (R$ 2,257 bilhões) em contratos e subsídios governamentais, com US$ 320 milhões (R$ 1,8 bilhão) provenientes de contratos de pesquisa com o governo dos EUA (88% do total). Os recursos vieram principalmente do Gabinete do Secretário de Defesa dos Estados Unidos e de outras agências de segurança nacional, do Departamento de Segurança Interna (DHS), do Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS), da Força Aérea e do Exército dos EUA. Em 2023, a RAND também recebeu mais de US$ 15 milhões (R$ 85,5 milhões) da Open Philanthropy, organização apoiada por Dustin Moskovitz, cofundador do Facebook, para projetos em IA e biossegurança, influenciando recomendações de políticas públicas para a administração Biden.
A RAND é criticada por seu viés e proximidade com o governo dos EUA, especialmente nas áreas de defesa e segurança. Críticos afirmam que essa relação influencia suas pesquisas e torna suas recomendações alinhadas aos interesses governamentais e militares americanos. Em dezembro de 2023, o Comitê de Ciência da Câmara dos EUA enviou uma carta ao Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia (NIST) expressando preocupações sobre a falta de revisão por pares em pesquisas da RAND usadas para fundamentar políticas públicas.
Assim como outros conceitos trazidos pelo Complexo Industrial da Censura para o Brasil, como a “desordem informacional”, o firehosing serve de justificativa para monitorar e regular conteúdos sob o pretexto de combater a desinformação.
Militante de esquerda pró-Moraes
Em junho de 2019, Letícia publicou um texto intitulado “Como passar o pano para conspiração judiciária – manual prático em manchetes”, criticando duramente a imprensa por, segundo ela, “passar pano” para o então juiz Sergio Moro e para o Ministério Público durante a Operação Lava Jato. Na ocasião, Letícia elogiava Glenn Greenwald e o Intercept pelas revelações que comprometeram a operação, destacando o papel da mídia em expor abusos e questionar o poder judiciário. Para ela, naquele momento, Greenwald era um herói desmascarando a “conspiração” da Lava Jato.
Cinco anos depois, no entanto, ao se deparar com uma reportagem de Greenwald denunciando práticas irregulares do gabinete de Moraes, Letícia adotou um tom completamente oposto. Em agosto de 2024, em um artigo intitulado “Glenn produz espuma e trabalha o sensorial”, ela minimiza a recente investigação de Greenwald, a Vaza Toga, afirmando que ele “produz espuma” e que o texto não oferece “nada de conteúdo factual”. Nesta ocasião, Letícia se posiciona contra o jornalista que antes admirava, acusando-o de manipulação sensorial e insinuando que as denúncias contra Moraes faziam parte de uma conspiração internacional financiada por interesses políticos estrangeiros, incluindo Elon Musk e Donald Trump. Para defender Moraes, Letícia chega a afirmar que o ministro possui a “coragem e culhão” necessários para enfrentar essa “narrativa falsa” e manter sua posição.
Em um artigo publicado no Jornal GGN em dezembro de 2021, Letícia Sallorenzo defendeu que Alexandre de Moraes fosse nomeado "Homem do Ano" devido à sua postura enérgica contra o "fascismo bolsonarista" e à sua atuação em defesa da democracia. Segundo ela, praticamente todas as vitórias contra o bolsonarismo naquele ano foram resultado direto da atuação isolada de Moraes, que teria "carregado o país no lombo" contra ataques ao Estado Democrático de Direito.
Letícia também exaltou a intervenção de Moraes em casos como a prisão do deputado Daniel Silveira, no fracasso de iniciativas pelo voto impresso, o enfraquecimento de manifestações e a restrição ao financiamento de apoiadores de Bolsonaro.
Colaboradora Informal
Em seu currículo Lattes, Letícia Sallorenzo menciona, além de sua formação acadêmica e atuação atual como redatora no Sindicato dos Professores do Distrito Federal, um vínculo institucional informal com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ela se descreve como "colaboradora informal" do TSE desde 2022, com uma carga horária de 20 horas semanais.
Uma fonte anônima trouxe mais revelações sobre o papel de Letícia Sallorenzo nos bastidores do combate à desinformação no TSE. Extremamente leal a Alexandre de Moraes, Letícia se destacava pela insistência em monitorar e exigir a remoção de qualquer conteúdo crítico ao ministro. “Ela ficava mandando vídeos de pessoas que falavam mal do Alexandre, e ninguém suportava isso,” relatou a fonte. “Ela insistia: ‘Vocês precisam resolver isso. Precisa tirar do ar’”. Segundo a fonte, Letícia usa suas conexões com jornalistas para atacar críticos de Moraes. “Se você fala um ‘A’ do Alexandre, ela aciona sua rede para te detonar,” completou.
Além disso, a fonte diz que Letícia teria acesso privilegiado a eventos fechados com ministros, como cerimônias de posse ou fim de mandato, algo que nem mesmo assessores e juízes próximos de Moraes tinham acesso. Um exemplo é a despedida de Moraes da presidência do TSE, que Letícia fez questão de presenciar e postou no Instagram, em 29 de maio. “Final de jogo a gente assiste do estádio. Despedida do ministro Alexandre do TSE. Obrigada por tudo, ministro! E se espirrar, saúde! #ValeuXandão”, escreveu.
A fonte revela também que Letícia esteve envolvida no caso dos empresários, entre eles Luciano Hang, acusados de defenderem em um grupo de WhatsApp um golpe de Estado caso Lula fosse eleito. Após a publicação de uma reportagem do jornalista Guilherme Amado no portal Metrópoles, em agosto de 2022, Moraes ordenou uma operação da Polícia Federal, incluindo buscas e bloqueios de contas e redes sociais dos envolvidos. Segundo a fonte, Letícia colaborou com a operação, entregando contatos e informações obtidas por infiltrados nos grupos. Hang, um dos principais alvos, teve suas redes bloqueadas por dois anos, mesmo sem provas de crime, sendo liberadas apenas em setembro deste ano, quando Moraes suspendeu a restrição.
Segundo o advogado André Marsiglia, especialista em direito constitucional, o TSE, como um órgão público, não pode ter colaboradores informais. Segundo ele, pode haver parcerias com empresas ou pessoas terceirizadas, mas toda e qualquer relação funcional direta com um tribunal precisa ser formal, em obediência aos princípios da transparência e da publicidade, exigidos da gestão pública pelo artigo 37 da Constituição Federal. “O tribunal manter relação informal com alguém viola a constituição e ofende a democracia”, concluiu.
O que dizem os envolvidos
Nossa reportagem entrou em contato com o TSE e com Letícia Sallorenzo; até o momento da publicação, não obtivemos retorno. O espaço permanece aberto para futuras manifestações.
Parabéns pela excelente e reveladora matéria!
A busca dessa conexão seria o básico para o jornalismo sério e comprometido com os fatos. Na realidade, a enxurrada de casos atrapalha um pouco esse aprofundamento. É também imperioso citar que o jornalismo factual está morrendo... Tudo virou contação de história e "narrativismo". Infelizmente. Fico pensando o que muitos jornalistas que se acham relevantes hoje estarão fazendo daqui a uns dez anos...