Moraes ignora direitos básicos e manda prender Daniel Silveira por ida ao hospital
Para juristas, a decisão reflete uma demonstração de força do STF, dirigida como um recado ao Congresso
No dia 24 de dezembro de 2024, apenas quatro dias após obter liberdade condicional, Daniel Silveira foi preso novamente por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). A prisão foi motivada por uma ida não autorizada ao hospital durante a madrugada, considerada descumprimento das regras impostas, incluindo o horário de recolhimento noturno.
O ministro alegou na decisão que a defesa tentou "justificar o injustificável", classificando o episódio como flagrante desrespeito ao Judiciário. Segundo ele, Silveira teria utilizado sua ida ao hospital “como verdadeiro álibi para o flagrante desrespeito às condições judiciais obrigatórias para a manutenção do seu livramento condicional". Mesmo com as justificativas apresentadas pela defesa, que comprovou a crise renal por meio de laudos médicos e explicou os desvios no trajeto, Moraes ordenou que o ex-deputado fosse enviado ao regime fechado, sendo transferido para a unidade de Bangu 8, localizada no Complexo de Gericinó.
Nossa apuração constata que a decisão de Moraes ignorou aspectos essenciais, como o estado de necessidade previsto no Código Penal e os direitos básicos à saúde e à vida, tratando uma emergência médica legítima como uma afronta pessoal. O ministro, sem sequer ouvir o acusado, revogou a liberdade condicional, desrespeitando a Lei de Execução Penal (LEP), que exige que o condenado seja ouvido antes de qualquer decisão nesse sentido – algo ainda mais relevante em casos de emergência médica.
O mais grave é que, apenas depois da prisão Moraes buscou justificar sua decisão, construindo a narrativa de trás para frente. Essa postura contraria os fundamentos do direito, que não admite decisões arbitrárias seguidas de tentativas de validação ex post facto. A decisão contra Silveira, marcada pela inflexibilidade e por um tom punitivo, levanta sérias dúvidas sobre sua proporcionalidade, razoabilidade e imparcialidade, ainda mais em um processo no qual a suposta vítima é o julgador. A conduta de Moraes neste caso lembra o episódio envolvendo Cleriston Cunha, o “Clezão”, que morreu após emergências médicas serem negligenciadas judicialmente por Alexandre de Moraes.
Segue um resumo das alegações para revogar a liberdade condicional e as suas respectivas justificativas.
Alegação 1: Ida ao hospital sem autorização judicial.
Moraes afirmou que Silveira "teria estado em um hospital SEM QUALQUER AUTORIZAÇÃO JUDICIAL" (escrito em caps lock na decisão).
Não é necessário autorização judicial em caso de emergência médica, pois o direito à saúde e à vida é garantido pela Constituição Federal, especialmente pelos artigos 5º (direito à vida) e 196 (direito à saúde). Esses direitos têm prioridade absoluta sobre normas ou restrições processuais, incluindo as condições impostas em regimes de prisão domiciliar.
O estado de necessidade, previsto no artigo 24 do Código Penal, permite que uma pessoa pratique atos normalmente considerados ilícitos para evitar um mal maior, como um risco grave à sua saúde ou à sua vida. No caso em questão, a saída de Daniel Silveira para buscar atendimento médico se enquadra nessa situação, especialmente porque a crise renal apresentava sintomas graves, como a presença de sangue na urina, comprovados por exames e boletins médicos.
A regra de permanência na residência no período noturno deve ser interpretada de forma razoável e proporcional, considerando o contexto de emergência médica. O objetivo dessa restrição é evitar saídas não justificadas, mas não pode se sobrepor ao direito à saúde e à vida garantidos pela Constituição.
Além disso, o recesso forense e a indisponibilidade do Judiciário no horário noturno tornam inviável a solicitação prévia de autorização judicial para um deslocamento emergencial, agravando a urgência do caso. A logística para viabilizar o atendimento em um hospital durante a madrugada não pode ser tratada como uma violação dolosa das condições impostas, mas sim como uma medida inevitável e urgente para proteger a integridade física e a vida de Silveira.
É importante ressaltar que, em emergências médicas, a demora ou omissão no atendimento pode resultar em consequências irreversíveis, como agravamento do quadro clínico ou até mesmo risco de morte. A exigência de autorização judicial nesses casos seria não apenas desproporcional, mas também impraticável, violando os direitos fundamentais do indivíduo.
Portanto, ao ignorar esses aspectos e tratar a situação como uma violação deliberada da ordem judicial, a decisão de Moraes desconsidera o princípio da proporcionalidade, fundamental na aplicação das normas penais e processuais. Esse princípio exige que as decisões judiciais sejam adequadas, necessárias e razoáveis, algo que não se verifica neste caso, dada a justificativa robusta apresentada pela defesa.
Alegação 2: questionamento sobre veracidade ida hospital
Moraes também questionou a veracidade da permanência no hospital, afirmando que "se é que realmente existiu a estadia".
A estadia no hospital está devidamente registrada, com boletim médico e exames assinados eletronicamente. Questionar a veracidade desses registros é insinuar fraude por parte do hospital, o que pode configurar abuso de autoridade, conforme previsto na Lei nº 13.869/2019 (Lei de Abuso de Autoridade). De acordo com o artigo 30 dessa lei, constitui crime de abuso de autoridade o ato de imputar a alguém, de forma indevida, a prática de crime ou de conduta irregular, quando não há elementos que justifiquem tal acusação. Ao colocar em dúvida documentos oficiais emitidos por uma instituição de saúde, Moraes estaria extrapolando suas prerrogativas judiciais e desrespeitando provas cabais apresentadas pela defesa.
Adicionalmente, tal postura pode ser interpretada como uma violação dos princípios constitucionais de boa-fé e presunção de inocência, fundamentais para o devido processo legal. Ao insinuar fraude sem apresentar qualquer evidência, o magistrado fragiliza a imparcialidade que deve nortear suas decisões e compromete a credibilidade do Judiciário.
O questionamento infundado de documentos médicos também pode configurar calúnia, caso se entenda que a insinuação de fraude atingiu diretamente a reputação do hospital ou dos profissionais envolvidos na emissão dos documentos. O Código Penal, em seu artigo 138, define calúnia como imputar a alguém, falsamente, fato definido como crime, o que pode incluir a acusação implícita de que o hospital teria adulterado ou falsificado informações médicas.
Ao insinuar fraude nos registros médicos, Moraes extrapola os limites de sua atuação judicial e pode configurar abuso de autoridade, calúnia ou, no mínimo, uma grave violação ao princípio da proporcionalidade e ao devido processo legal. A conduta de Silveira foi justificada e documentada, demonstrando que o deslocamento ao hospital foi legítimo e necessário. Ao tratar o caso como uma violação deliberada e ignorar os elementos apresentados, Moraes comprometeu a neutralidade de sua decisão e desrespeitou direitos fundamentais consagrados pela Constituição.
Alegação 3: descumprimento das regras para a liberdade condicional
Segundo Moraes, Silveira desrespeitou a obrigatoriedade de permanecer em casa das 22h às 6h, retornando à sua residência às 2h10 da madrugada do dia 22 de dezembro, mais de 4 horas após o horário limite de recolhimento noturno.
Para melhor análise, apresentamos uma linha do tempo baseada em entrevista com o advogado de Silveira, Paulo Faria, e nas informações documentais disponíveis:
20h41 (21 de dezembro): O advogado Paulo Faria recebe uma ligação de Daniel Silveira, relatando estar passando muito mal, com fortes dores e urinando sangue. Preocupado, o advogado orienta Silveira a buscar atendimento médico imediato e recomendou que pegasse todos os documentos e exames realizados para justificar uma eventual ultrapassagem do horário de recolhimento. Nesse momento, ainda faltavam cerca de 1h20 para o limite de 22h.
Trajeto para o hospital: Silveira sai de casa e, antes de seguir para o hospital, passa no Condomínio Granja Santa Lúcia, em Itaipava, para buscar sua esposa, Paola da Silva Daniel. A defesa explicou que a esposa não estava na residência do casal devido a preocupações com a segurança, e Silveira quis que ela o acompanhasse no hospital.
22h59 (21 de dezembro): Silveira dá entrada no Hospital Santa Teresa, em Petrópolis, onde é atendido por uma crise renal, comprovada por exames e laudos médicos. O boletim médico registra presença de sangue na urina e níveis alterados que indicam um quadro clínico grave;
Refizemos a rota no Google Maps e constatamos que o trajeto da residência de Silveira ao condomínio levaria 24 minutos e do condomínio ao hospital 44 minutos, totalizando 1h8min. Se Silveira tivesse saído imediatamente após a ligação e feito este trajeto, teria chegado ao hospital às 21h49, ainda dentro do horário permitido. Entre 21h49 e 22h59 há exatamente 70 minutos disponíveis. Ou seja, Silveira teve pouco mais de uma hora para se arrumar e realizar as tarefas de embarque e desembarque na residência da esposa e no hospital. É importante destacar que este tipo de análise, com base no Google Maps, pode apresentar variações devido a condições imprevistas no trajeto, como o tráfego nas vias e a velocidade de circulação, que podem alterar os tempos estimados.
0h34 (22 de dezembro): O atendimento é encerrado, e Daniel recebe alta. Após sair do hospital, Silveira retorna ao condomínio para deixar sua esposa antes de seguir para casa;
2h10 (22 de dezembro): Ele chega à residência às 2h10, conforme registro da tornozeleira eletrônica. Os tempos de trajeto, somados ao atendimento médico, explicam o atraso no retorno à residência.
O trajeto do hospital ao condomínio foi estimado em 36 minutos e do condomínio à residência em 21 minutos, totalizando 57 minutos. Somando 0h34 (horário de alta) com os 57 minutos de trajeto, chegamos a 1h31. Sobram, assim, aproximadamente 39 minutos para embarque, desembarque e ajustes na logística, corroborando os argumentos da defesa.
A análise detalhada dos horários e trajetos apresentados pela defesa demonstra que a conduta de Daniel Silveira foi compatível com o estado de necessidade em que se encontrava. A parada no condomínio para buscar a esposa foi devidamente justificada pela defesa. Considerando que Silveira estava debilitado, a presença de um acompanhante no hospital não apenas é razoável como reforça o argumento de boa-fé.
Essa necessidade integra o mesmo trajeto, sem configurar desvios ou descumprimento doloso das condições impostas. O tempo total, as justificativas documentadas e o quadro clínico grave comprovam que o atraso no retorno à residência não configura um descumprimento doloso das condições de liberdade condicional, mas sim uma resposta proporcional e legítima a uma emergência médica.
Alegação 4: não havia demonstração de urgência que justificasse a ida ao hospital
Moraes afirma que não houve autorização judicial para o comparecimento ao hospital, sem qualquer demonstração de urgência.
Moraes não é médico e, portanto, não possui competência técnica para avaliar a gravidade de um quadro de saúde com base em seu próprio juízo. A crise renal enfrentada por Daniel Silveira foi confirmada por exames médicos laboratoriais apresentados pela defesa que detectaram a presença de sangue na urina, um sintoma que indica um potencial risco à saúde e requer atendimento médico imediato.
O exame de urina tipo I realizado em Daniel Silveira mostrou diversos achados significativos que indicam uma condição médica grave e requerem atenção imediata. Vamos detalhar os resultados encontrados:
Hemoglobina: "PRESENTE S ++"
A presença de hemoglobina na urina, conhecida como hematúria macroscópica, indica que há sangue visível na urina. Esse é um sinal claro de sangramento no trato urinário, o que pode ser causado por diversas condições graves, como infecções urinárias, cálculos renais ou lesões nos rins. A hematúria macroscópica é uma condição que exige avaliação imediata, pois pode sinalizar complicações como infecção urinária severa ou até mesmo o risco de insuficiência renal se não tratada a tempo.Hemácias: 18.000/mL
O número de hemácias (células vermelhas do sangue) encontrado foi 18.000/mL, muito acima do limite de referência normal, que é de até 8.000/mL. Esse aumento significativo na contagem de hemácias reforça a presença de sangramento no trato urinário.Proteínas: "PRESENTES +"
A presença de proteínas na urina é um sinal de que há uma possível lesão renal. Normalmente, os rins filtram os resíduos do sangue sem permitir a passagem de proteínas para a urina. Quando isso ocorre, pode ser um indicativo de que os rins não estão funcionando adequadamente, o que pode ser causado por doenças renais, como glomerulonefrite ou insuficiência renal.
O médico acrescentou no documento que, em exames sanguíneos realizados, foi encontrado um nível alto de creatinina (1,41) e uma ureia de 35, o que indica que os rins de Daniel podem não estar funcionando adequadamente.
O encaminhamento médico assinado eletronicamente destaca que o CID N18, associado ao caso de Silveira, indica insuficiência renal crônica, uma condição que exige monitoramento contínuo e intervenção imediata em situações de crise, como dor lombar intensa ou hematúria. O médico plantonista recomendou consulta com um nefrologista e aumento da ingestão hídrica, medidas consistentes com um quadro de descompensação renal.
O advogado Paulo Faria relatou que Silveira estava sentindo fortes dores lombares e urinando sangue, uma situação que demanda cuidado médico urgente, uma vez que pode estar associada a condições graves, como cálculos renais obstruindo as vias urinárias, infecções severas ou danos estruturais ao trato urinário. A demora ou negligência no tratamento desse tipo de quadro pode resultar em complicações como infecção generalizada (sepse), insuficiência renal ou até mesmo em morte.
Além disso, o artigo 196 da Constituição Federal estabelece que "a saúde é direito de todos e dever do Estado", o que significa que qualquer pessoa, independentemente de sua condição judicial, deve ter acesso a tratamento médico emergencial. A afirmação de Moraes, ao desconsiderar a gravidade comprovada da crise renal, entra em conflito direto com esse princípio constitucional, tratando uma emergência médica legítima como um suposto ato de descumprimento doloso das condições impostas.
Adicionalmente, ao ignorar os documentos médicos e questionar a urgência da ida ao hospital, Moraes viola o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade, que são fundamentais no Direito Penal e Processual Penal. Esse princípio exige que a análise dos fatos leve em conta as circunstâncias específicas do caso e a gravidade da situação apresentada.
Por fim, tratar a avaliação de um quadro clínico emergencial como uma questão subjetiva, sem considerar a evidência médica apresentada, pode comprometer a imparcialidade e a credibilidade da decisão judicial. Esse tipo de postura é especialmente preocupante em um contexto onde a liberdade de um indivíduo está em jogo, agravando a percepção de que a decisão foi mais punitiva do que justa.
Decisão é amplamente criticada por juristas
Juristas criticaram a decisão pela falta de proporcionalidade e técnica jurídica. Segundo André Marsiglia, advogado e professor de Direito Constitucional, o descumprimento de uma única condição na liberdade condicional, como no caso de Silveira, não torna a revogação automática ou obrigatória, conforme o artigo 87 do Código Penal, especialmente quando as demais condições estão sendo cumpridas. Ele também ressaltou que a lei exige que o acusado seja ouvido antes da decisão, sobretudo em casos de emergência médica, o que não ocorreu.
Marsiglia destacou ainda a ausência de bom senso na decisão, que ignorou a humanidade necessária para avaliar a situação emergencial e princípios fundamentais como a proporcionalidade e a razoabilidade. Para ele, Silveira se tornou um "bode expiatório", e a decisão reflete uma demonstração de força do Supremo Tribunal Federal, dirigida como um recado ao Congresso. “A decisão faz uso de um preciosismo que não é aplicado nem para crimes graves, muito menos para um parlamentar preso por fazer uso da palavra”, concluiu Marsiglia.
A doutora em Direito Érica Gorga complementou as críticas, classificando a prisão de Silveira como "tortura jurídica, física e psicológica". Gorga apontou que o artigo 118 da Lei de Execução Penal (LEP) exige a prática de um novo crime ou falta grave para justificar a regressão de regime, critérios que claramente não se aplicam a uma ida ao hospital para buscar tratamento médico. Ela também destacou que o artigo 51 da LEP define como falta grave apenas condutas injustificadas, o que está distante do contexto de emergência médica comprovada no caso de Silveira.
Além disso, Gorga criticou a violação do direito de defesa, já que Silveira não foi ouvido antes da decisão, contrariando o parágrafo 2º do artigo 118 da LEP. Para ela, essa omissão não apenas é ilegal, mas também atinge a advocacia, motivo pelo qual a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) deveria se manifestar.
"Prender alguém por buscar atendimento médico e mantê-lo encarcerado em condições de saúde fragilizada é tortura. A democracia é incompatível com tortura, que é uma prática típica de regimes ditatoriais", concluiu Gorga.
O que diz a defesa
A defesa de Daniel Silveira afirma que, devido à ambiguidade e falta de clareza, o texto da decisão de Alexandre de Moraes foi mal interpretado pelo próprio ministro e sua assessoria. Segundo os advogados, a regra estabelecia que Silveira deveria permanecer em casa apenas à noite, das 22h às 6h, incluindo finais de semana e feriados. Contudo, o relator teria entendido equivocadamente que ele estaria proibido de sair de casa durante todo o dia nesses períodos.
A confusão teria ocorrido devido à redação da frase: "Proibição de ausentar-se da comarca e obrigação de recolher-se à residência no período noturno, das 22h às 6h, bem como nos sábados, domingos e feriados." Para os advogados, a expressão "bem como nos sábados, domingos e feriados" refere-se apenas ao horário noturno, enquanto o relator interpretou como uma obrigação de permanência integral. Eles argumentam que a análise linguística do texto deixa claro que a decisão permitia circulação durante o dia.
Essa ambiguidade, segundo a defesa, comprometeu a segurança jurídica e resultou em uma aplicação desproporcional das condições impostas. Além disso, os advogados sustentam que a emergência médica de Silveira, comprovada por exames e boletins médicos, justifica plenamente os deslocamentos realizados, reforçando que não houve qualquer descumprimento doloso das regras.
Por fim, a defesa informou que vai recorrer ao plenário do STF para questionar a decisão de Moraes e buscar uma revisão das condições, exigindo que futuras determinações respeitem os princípios da proporcionalidade, razoabilidade e imparcialidade.