Judiciário se recusa a revelar quantos ainda estão presos pelo 8 de janeiro
Mesmo garantidas por lei, informações básicas sobre os presos do 8 de janeiro seguem escondidas por trás de sigilos ilegais e negativas formais.
Quantas pessoas ainda estão presas por ordem do Supremo Tribunal Federal em decorrência dos atos de 8 de janeiro de 2023? A resposta oficial, reiterada por STF, Ministério Público Federal e Polícia Federal, é o silêncio — sustentado por sigilos vagos, negativas formais e procedimentos burocráticos que contornam a Lei de Acesso à Informação (LAI). Na prática, o sistema de Justiça esconde os números do encarceramento político mais significativo da história recente do país.
A apuração partiu de uma missão aparentemente simples, que recebi da equipe do Estúdio Quinto Elemento, que preparava um especial de Páscoa sobre o tema: quantas pessoas ainda estão presas por decisão do STF nos inquéritos relacionados ao 8 de janeiro? (INQs 4879, 4880, 4921, 4781 e Petição 11028.)
A busca revelou algo maior do que a ausência de dados: nenhuma instituição está disposta a prestar contas, mesmo sobre informações básicas e consolidadas. Todas as tentativas de obter os números foram recusadas com justificativas frágeis ou ilegais. O levantamento também expôs um sistema que trata presos políticos como números invisíveis. Ainda assim, o esforço coletivo por transparência começou a surtir efeito: a simples organização dos casos mais graves pressionou autoridades e resultou na soltura de ao menos três pessoas.
Esta reportagem reconstrói os bastidores desse apagamento institucional e documenta o que o Judiciário brasileiro se recusa a dizer em voz alta: quem ele prende — e por quanto tempo.
A busca que rompeu o silêncio
O primeiro passo de uma reportagem investigativa é buscar informações em reportagens já publicadas na imprensa tradicional. Entretanto, não encontrei os dados em nenhuma fonte atualizada ou oficial. Perguntei então a colegas jornalistas. Eli Vieira, que atualmente escreve no Portal Cláudio Dantas, me informou que o deputado federal Marcel Van Hattem (NOVO-RS) havia solicitado a informação à assessoria parlamentar da Procuradoria-Geral da República. Abordei a assessoria do deputado, que confirmou a solicitação, mas até o momento desta publicação, a informação também não havia sido fornecida pela PGR.
Em seguida, entrei em contato com advogados que acompanham o caso diretamente, na tentativa de acessar números parciais. Conversei com Ezequiel Silveira, advogado e representante da ASFAV (Associação dos Familiares e Vítimas do 8 de Janeiro). Ele confirmou o que já se suspeitava: ninguém possui a informação consolidada, nem mesmo a própria associação.
Silveira contou que já pensou em organizar um censo com os nomes e perfis dos presos, mas esbarrou na resistência dos próprios detentos e de suas famílias, que temem que a exposição pública de suas situações possa resultar em retaliações ou dificultar progressos nos processos judiciais.
Sugeri a Silveira que, se um levantamento geral era inviável, ao menos listássemos os casos mais graves — uma espécie de amostragem humanizada para romper o apagamento. E foi o que fizeram. A ASFAV elaborou uma lista com 20 nomes, acompanhada por um relatório de mais de 500 páginas, denunciando casos de doenças graves, idosos encarcerados, mães com filhos pequenos e pacientes psiquiátricos em prisão prolongada.
O material foi enviado formalmente ao deputado Luciano Zucco (PL-RS), líder da oposição na Câmara, que o utilizou para embasar o requerimento de criação de uma subcomissão especial na Comissão de Segurança Pública. A subcomissão foi aprovada em 1º de abril de 2025, com o objetivo de investigar violações de direitos humanos no contexto dos presos do 8 de janeiro e pressionar pela tramitação do PL da Anistia, ainda travado na presidência da Casa.
Poucos dias depois, em 9 de abril, Zucco também encaminhou um ofício ao ministro Alexandre de Moraes solicitando a extensão das decisões de prisão domiciliar concedidas a três réus do 8 de janeiro — Jaime Junkes, Eliene Amorim de Jesus e a cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos — a todos os demais presos em situação semelhante. O documento listava os 20 casos graves reunidos pela ASFAV e sugeria a criação de uma força-tarefa no STF para garantir celeridade no julgamento dos presos e evitar novas tragédias como a morte de Cleriston Pereira da Cunha, o Clezão — vítima de negligência institucional, após o ministro Alexandre de Moraes não deliberar a tempo sobre seu pedido de prisão domiciliar, mesmo com parecer favorável do Ministério Público.
Poucos dias depois da entrega do relatório e da formalização da subcomissão, ministros começaram a conceder liberdades. Entre os beneficiados estão Marcos Alexandre Machado de Araújo, preso desde abril de 2023 e internado na ala psiquiátrica; Sérgio Amaral Resende, com pancreatite necrosante, hérnia umbilical e anemia profunda, que teve sua soltura determinada em 18 de abril de 2025, enquanto esta reportagem era finalizada; e o caso mais emblemático: o pastor Jorge Luiz dos Santos.
Preso desde o próprio 8 de janeiro de 2023, Jorge Luiz, de 59 anos, foi condenado a 16 anos e 6 meses de prisão mesmo sofrendo de hipertensão grave e sopro cardíaco grau 6, condição que impede o controle da pressão arterial por medicamentos. Em 15 de abril, a situação chegou ao limite: um laudo pericial apontou a necessidade de cirurgia cardíaca imediata e alertou que o ambiente prisional era inadequado para o tratamento e recuperação. Ainda assim, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, manifestou-se contrariamente ao pedido de prisão domiciliar humanitária. Cabia, então, ao ministro Alexandre de Moraes a decisão final.
A pressão popular e institucional surtiu efeito. Na mesma data, Moraes revogou a prisão preventiva de Jorge Luiz e autorizou que ele cumprisse prisão domiciliar monitorada por tornozeleira eletrônica, com proibição do uso de redes sociais. A decisão, fundamentada nos artigos 66 e 117 da Lei de Execuções Penais (Lei nº 7.210/84), atendeu à urgência do caso.
Quando o Estado fecha todas as portas
Outro caminho que percorri para obter a resposta foi recorrer à Lei de Acesso à Informação (LAI). Como repórter, eu já havia feito diversos pedidos ao STF por meio da assessoria de imprensa, sempre sem sucesso. Desta vez, optei por acionar o mecanismo legal previsto na LAI, que obriga órgãos públicos a fornecerem informações de interesse coletivo ou geral, conforme determina o art. 5º, XXXIII da Constituição Federal e os artigos 7º e 10 da própria lei.
Criada em 2011 (Lei nº 12.527), a LAI é um dos pilares da transparência no Brasil. Ela garante que qualquer cidadão possa solicitar informações públicas a órgãos dos Três Poderes, sem necessidade de justificativa — inclusive pela internet.
Enviei então pedidos para três instituições diretamente envolvidas nas investigações e julgamentos dos atos de 8 de janeiro:
STF (Gabinete do ministro Alexandre de Moraes);
MPF (Ministério Público Federal);
PF (Polícia Federal, via Ministério da Justiça).
O conteúdo dos pedidos era simples e direto: Quantas pessoas seguem presas em decorrência dos atos de 8 de janeiro? Não pedi nomes, processos, sentenças, nem dados pessoais. Apenas um número consolidado.
O primeiro a responder foi o gabinete do ministro Alexandre de Moraes, que informou que o pedido “não se trata de solicitação de informação”, alegando que tudo que envolve processo judicial deve ser tratado conforme o regimento interno do Tribunal. No mesmo dia, protocolei recurso em 1ª instância. Argumentei que a solicitação dizia respeito a um dado objetivo e de interesse coletivo, e que a negativa violava dispositivos centrais da Lei de Acesso à Informação — especialmente o artigo 7º, parágrafo 3º, que garante o direito de acesso a dados estatísticos e consolidados, mesmo em casos de sigilo parcial. Também citei o artigo 5º, inciso XXXIII da Constituição, que assegura o direito à informação, e o artigo 37, que determina a publicidade como princípio da administração pública. O recurso foi indeferido com a mesma justificativa genérica. Para piorar, o sistema não habilitou a opção de recurso em 2ª instância, violando o art. 16 da própria LAI, que garante expressamente esse direito.
A resposta do MPF veio poucos dias depois, também em tom evasivo. Informaram que os números de inquérito apresentados não correspondiam a procedimentos internos da instituição. Afirmaram ainda que, por se tratarem de inquéritos judiciais em trâmite no Supremo, caberia à autoridade judicial ou à autoridade policial o fornecimento dessas informações. E concluíram que, como eu não havia encaminhado nenhum anexo que permitisse localizar os dados, o pedido seria finalizado por “inviabilidade de atendimento”. A negativa do MPF foi acompanhada de uma tentativa sutil de empurrar a responsabilidade para outro órgão, prática recorrente quando o tema é sensível.
Na prática, o MPF alegou que os inquéritos mencionados não estariam sob sua jurisdição direta. No entanto, essa justificativa não se sustenta. O Ministério Público Federal tem participação em todos esses processos — oferece denúncias, se manifesta em audiências, apresenta pareceres e atua ativamente como parte nos julgamentos. Dizer que não possui essas informações ou que não tem como localizá-las é, no mínimo, uma forma de evitar responder a uma pergunta simples e incômoda: quantas pessoas seguem presas por força do próprio sistema judicial federal, com o qual o MPF colabora diariamente?
Essa resposta, ainda que protocolar, escancara uma realidade incômoda: ao afirmar que os inquéritos não tramitam internamente, o MPF revela que não os reconhece como parte da sua esfera de controle ou responsabilidade — por estarem sob jurisdição direta do STF. Isso explicita um dos pilares das ilegalidades dos chamados inquéritos do fim do mundo: o esvaziamento do Ministério Público como titular da ação penal, contrariando o sistema acusatório previsto na Constituição e no Código de Processo Penal. Em vez de exercer sua função de fiscal da lei e promotor da ação penal, o MPF se limita a acompanhar decisões já tomadas por um único ministro, deixando o Judiciário acumular as funções de investigar, acusar e julgar — como denunciado no relatório que produzi para o IFPE.
Já a Polícia Federal respondeu que os dados estão sob sigilo, mas não apresentou qualquer base legal específica, grau de sigilo, autoridade classificadora ou prazo de restrição — como exige o art. 30 do Decreto nº 7.724/2012, que regulamenta a LAI. Além disso, orientou que o pedido fosse feito presencialmente em uma unidade da PF, contrariando o art. 10 da própria lei, que assegura o exercício do direito de acesso por meio eletrônico.
Todos os órgãos ignoraram um dispositivo fundamental da LAI: o artigo 7º, §2º, que garante o acesso à parte não sigilosa de uma informação, mesmo quando parte dela estiver sob segredo, permitindo a divulgação por meio de extrato ou certidão parcial.
A recusa sistemática, acompanhada de justificativas frágeis, demonstra um padrão de opacidade institucional, onde o sigilo se torna uma blindagem contra a transparência — e não uma exceção prevista em lei.
A resposta que não existe
As instituições públicas resistem sistematicamente a fornecer qualquer dado consolidado sobre os detidos. Nenhum órgão apresentou sequer uma estimativa aproximada. Diante da recusa do Estado em informar, resta a alternativa mais primitiva: levantar os nomes um a um, verificar decisões judiciais dispersas e cruzar as listas de presos e soltos até restar quem ainda está em cárcere. É um trabalho hercúleo, impreciso e indigno de um Estado democrático de direito. Mas, em 2025, essa é a única via possível para acessar um dado elementar: quantas pessoas seguem presas por ordem direta de um ministro do Supremo Tribunal Federal. A população terá que fazer o que o sistema de Justiça se recusa a fazer.
A recusa sistemática em informar, amparada por sigilos vagos e desprovidos de fundamento, não é um desvio pontual — é parte de um padrão. Um padrão que vem sendo chamado por juristas e defensores de direitos fundamentais de lawfare: o uso do aparato judicial como instrumento de perseguição política. Os números não são apenas ocultados. Eles são tratados como ameaça, porque evidenciam a desproporção das prisões, a seletividade das penas e o uso do direito penal como forma de silenciamento. A ausência de dados, portanto, não é uma falha burocrática. É a face invisível de um sistema que abandonou a imparcialidade
A resposta continua oculta — protegida por sigilos, sem justificativa, e sem qualquer traço de transparência.
Parabéns pelo excelente trabalho. É assustador o nível vassalagem de funcionários públicos concursados, que possuem estabilidade exatamente para não cumprir ordens ILEGAIS e, como servidores públicos, têm a obrigação de dar publicidade aos seus atos. A doutrinação ideológica, chegou a níveis absurdos, está corroendo e destruindo as instituições de dentro para fora.
Parabéns pelo excelente trabalho. Não desista, você vai encontrar muita resistência do sistema, mas também vai encontrar, mesmo dentro do próprio sistema, quem esteja disposto a ajudar, por que essa causa - transparência - é muito justa.