Bate-Papo do UOL: o esconderijo virtual de estupradores de crianças
Atenção: esta reportagem contém descrições fortes de atos de abuso infantil. Se você é sensível a esse tipo de conteúdo, recomendamos cautela ao prosseguir com a leitura.
Reportagem publicada em 2 de julho de 2024
As salas de bate-papo do Universo Online (UOL) já foram muito populares entre os internautas brasileiros, no final dos anos 90 e início dos anos 2000. Por seu caráter anônimo, muitos frequentavam essas salas para paquerar ou buscar parceiros sexuais casuais. Muitas pessoas, no entanto, desconhecem que essas salas ainda existem e continuam sendo frequentadas por uma variedade de usuários, inclusive criminosos.
O UOL é um dos maiores provedores de conteúdo e serviços de internet no Brasil. Fundado em 1996 pelo banqueiro Luiz Frias, o UOL oferece uma ampla gama de produtos e serviços, incluindo notícias, entretenimento, tecnologia, esportes, e-mail, hospedagem de sites, comércio eletrônico e soluções de segurança digital. O UOL é controlado pela PagSeguro, que, por sua vez, é controlada pela OFL S.A., uma holding controlada pela família Frias que também engloba outras empresas, como o jornal Folha de São Paulo.
O bate-papo do UOL possui diversas salas com temáticas diferentes. Entre elas, há as exclusivas para assinantes e as com temática sexual. Pouco tempo após a entrada de nossa equipe nas salas de bate-papo do UOL, nos deparamos com diversos vendedores de vídeos e imagens de abuso infantil, incluindo de bebês. Isto ocorre mesmo havendo um botão para efetuar denúncias de conteúdos suspeitos em salas de bate-papo. Encontramos também menores de idade participando livremente das salas de bate-papo com temática sexual e marcando encontros com adultos.
Na maioria dos casos, o anúncio é feito utilizando-se de códigos ou abreviações. Por exemplo, meninos e meninas são chamados de “ninos” e “ninas”; estupro é “estru”; incesto é “inces”; e zoofilia é “zoo”. Há variações que utilizam números ou caracteres especiais no lugar de algumas letras. A estratégia visa burlar os sistemas de moderação das salas de bate-papo.
Os vendedores oferecem estes conteúdos em mensagens abertas nas salas, mas indicam perfis no Telegram para contato para a realização da compra através de fintechs. Entramos em contato com três destes vendedores simulando interesse em comprar os materiais.
Importante destacar que nossa reportagem não fez pagamentos ou armazenou materiais oferecidos por estes vendedores. Posteriormente as infomações coletadas foram enviadas para as autoridades competentes para apuração dos crimes cometidos.
Vendedores de pornografia infantil
O primeiro vendedor nos informou que possui quase 14 mil vídeos e 180 grupos com links dos convites em planilhas com temas relacionados, organizadas por temas, sexo e idade. As idades apresentadas possuem dois grupos: crianças de cinco a nove anos e 10 a 15 anos. O vendedor afirma que o sistema é seguro porque não é necessário baixar os vídeos, que estariam “hospedados em nuvem, criptografados e não rastreados”. Além disso, ele menciona utilizar uma casa de jogos que não expõe os dados do comprador, para garantir o anonimato do comprador. Os preços variam de R$ 35,00 a R$ 75,00.
Para provar que realmente possui os materiais, o vendedor nos enviou três vídeos autodestrutivos (que se apagam após a visualização). Em todos há cenas de abusos e estupros de crianças com cerca de cinco anos de idade. As cenas são chocantes. Em um deles, a criança implora e chora para que o homem pare de estuprá-la. Em outro, uma mulher faz sexo oral com um garotinho. Há um terceiro vídeo com uma menina sendo estuprada violentamente.
Este vendedor nos enviou em seguida um link para pagamento via Pix. Ao inserir o código “copia e cola” para simular a efetivação do pagamento, o site do banco nos alertou que o pagamento seria direcionado para uma plataforma de jogos. Este “copia e cola” nos direcionou para a plataforma de pagamento Bytech LTDA, uma empresa de tecnologia sediada em São Paulo.
Segundo o site da Receita Federal, a Bytech tem como sócio-administrador Bruno Souza Martins. No site Reclame Aqui, há várias reclamações relacionadas a pagamentos para sites de apostas intermediados pela Bytech. A empresa respondeu a muitas dessas reclamações informando que é apenas um “gateway de pagamento”, ou seja, não é o beneficiário final das transações. Martins também consta como proprietário das fintechs Arkpago, Viatech e Citabank (não confundir com Citibank), que também colecionam as mesmas reclamações no Reclame Aqui de aplicação de golpes financeiros. A Citabank atualmente está conectada à Epay Alliance Holding LLC, uma empresa localizada na Flórida, nos Estados Unidos, também de propriedade de Bruno Souza Martins.
Em outra sala de bate-papo, nos deparamos com outro vendedor de vídeos de abuso infantil. “Sou o melhor vendedor de conteúdos proibidos do bate-papo, tenho pra quase todos os gostos no melhor preço e sem golpe. Precisando é só chamar, tudo no melhor preço”, anunciou, incluindo também um perfil no Telegram para a compra. Entramos em contato com este vendedor, que nos ofereceu 1400 vídeos por R$ 30,00. O vendedor forneceu uma chave aleatória de Pix para pagamento. A conta, que provavelmente está no nome de um laranja, pertence ao banco Inter.
Encontramos um terceiro vendedor que afirmou ter até cinco terabytes de vídeos de abuso infantil e estupro, incluindo de bebês. Ele nos ofereceu métodos de pagamento via cartão de crédito e Pix. Para o cartão de crédito, foi disponibilizada uma conta na plataforma InfinitePay em nome de uma laranja. O pagamento via Pix, por meio da função "copia e cola", direciona o valor ao Banco Santander através da empresa "SHPP Brasil". Essa empresa de pagamentos possui dezenas de reclamações no site Reclame Aqui por supostos golpes.
Participação de menores
Embora o bate-papo do UOL proíba a participação de menores de 18 anos em salas de temática sexual, não há verificação de idade ou necessidade de cadastro para utilizar as salas de bate-papo do UOL. Isto é exigido apenas dos “usuários VIP”, que assinam planos a partir de R$ 9,90 por mês para terem acesso a salas exclusivas e outros benefícios. Assim, diversos jovens frequentam salas com tema sexual e marcam encontros com adultos. Em alguns casos, os menores se oferecem em troca de pix.
Conversamos com um jovem, que chamaremos de João, que nos contou que tem 12 anos e já se encontrou com mais de uma dezena de homens que conheceu no bate-papo do UOL. Segundo ele, não houve qualquer dificuldade em acessar as salas. João nos contou que não se sente abusado ao ter relações com homens mais velhos — ele nos disse que o mais velho que já saiu tinha 55 anos. João diz que não utiliza preservativos durante os encontros, pois afirma utilizar PrEP (profilaxia pré-exposição, um medicamento que reduz o risco de infecção pelo HIV) e realizar exames periodicamente.
Uma outra adolescente de 11 anos, que chamaremos aqui de Maria, afirmou que frequenta as salas de bate-papo do UOL há cerca de um ano. Segundo ela, é comum receber cantadas de homens mais velhos, mas ela diz não se importar com este tipo de comentário.
Nenhum dos dois adolescentes comprovou sua idade para nossa equipe, podendo ser pessoas de outras idades fingindo ser adolescentes. De qualquer forma, nossa equipe encontrou diversos outros usuários com apelidos que sugerem serem crianças ou adolescentes. como “viadinho12a” (12 anos) e “novinha11”. Há, no entanto, restrição durante as mensagens. O sistema do bate-papo bloqueia mensagens que contenham as palavras “menino” ou “menina”, e links externos.
Investigação
Em 12 de maio de 2024, a Procuradoria da República em Guajará-Mirim, Rondônia, arquivou uma investigação sobre denúncias de conteúdo inadequado em uma sala de bate-papo do UOL. A investigação foi encerrada devido à “insuficiência de evidências”. A denúncia envolvia uma sala de bate-papo intitulada "elaAmaestrup", onde um casal trocava mensagens se identificando como fotógrafos.
A Procuradoria, liderada pelo procurador Carlos Frederico Santos, considerou as informações vagas e genéricas, sem provas concretas de pornografia infanto-juvenil. Segundo ele, a denunciante não forneceu os detalhes solicitados, como nomes de salas, datas, horários e identidades dos envolvidos. Nossa equipe, entretanto, encontrou o material em pouco menos de uma hora de pesquisa.
Nos “termos de uso” do seu site, o UOL afirma que, “em conformidade com o Termo de Cooperação assinado entre o UOL e o Ministério Público de São Paulo em novembro de 2005, o portal UOL e seus recursos não devem ser utilizados para transmitir, divulgar ou promover pornografia infantil, pedofilia, material racista, material discriminatório ou qualquer outro conteúdo que viole a legislação brasileira vigente”.
O perfil ”Uol Exposed” no X (antigo Twitter) tem feito denúncias, desde 2021, sobre venda de abuso infantil no bate-papo do UOL, incluindo pais que vendem conteúdo pornográfico de seus filhos. Segundo o perfil, diversas denúncias foram realizadas para a plataforma, que se limitava a responder com as mesmas mensagens pedindo para ajudar denunciando as mensagens e salas do aplicativo, mas não agia.
“Infelizmente, denunciar chats e salas do aplicativo não resolve absolutamente nada. A empresa UOL, que poderia facilmente deletar os chats e criar um sistema mais seguro para o aplicativo, prefere não agir, já que as salas em questão foram criadas por usuários que pagam”, escreveu o perfil.
Segundo o jurista Paulo Faria, “a conduta praticada pelos participantes de tais canais e chats é tipificada no Código Penal como 'Divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia', prevendo uma pena de reclusão de um a cinco anos, que pode ainda ser agravada”. Faria pede, inclusive, o aumento da pena para esses crimes.
Ainda, segundo Faria, cabe ao Estado proteger as crianças e coibir tais práticas criminosas, como tipificado no artigo 218-C Código Penal: “Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia”.
“Essa prática deve ser denunciada às autoridades, como MPF e delegacias especializadas em criança e adolescente e crimes cibernéticos. Não podemos nos calar diante disso. É muito grave e repugnante”, afirmou.
O que dizem os envolvidos
Nossa equipe entrou em contato com a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDH) para enviar mais detalhes da investigação, como os nomes dos envolvidos omitidos na reportagem. Nos foi informado que apenas podem tomar providências se forem informadas as violações, o nome da vítima e endereço completo da vítima, do suspeito ou de onde ocorreu a violação.
Depois que informamos que se trata de ocorrências no âmbito virtual, nos disseram que não há possibilidade de registrar a denúncia no MDH. Protocolamos então uma denúncia no Ministério Público Federal. Atualizaremos esta reportagem quando houver retorno.
Entramos em contato com a assessoria do UOL questionando se a empresa tem conhecimento de que há venda conteúdo de abuso infantil e a participação de menores suas salas de bate-papo. Questionamos também se a empresa tomará alguma medida para coibir estas práticas a partir desta denúncia. O UOL não respondeu nossas perguntas, mas nos enviou a nota abaixo.
“O UOL disciplina nos Termos de Uso do Bate-Papo UOL as restrições de idade para utilização da ferramenta, bem como prevê de forma detalhada as condutas vedadas e as sanções para a hipótese de seu descumprimento pelos usuários. O UOL não tolera a divulgação de conteúdo ilegal ou inadequado no Bate-Papo UOL e oferece, com destaque, mecanismos para denúncia, inclusive diretamente para o Ministério Público Federal, conforme acordo de cooperação ativo. Disponível aqui”.
Entramos também em contato com as empresas Telegram, Bytech, SHPP Brasil e InfinitePay, mas até o momento da publicação não obtivemos retorno.