Nos últimos dias, ganhou atenção internacional a notícia de que a Defensoria Pública da União (DPU) acionou a Justiça brasileira solicitando que a rede social X (anteriormente Twitter) seja condenada em R$ 1 bilhão por "danos morais e sociais contra a democracia brasileira". A ação pede ainda que a rede social seja obrigada a adotar várias políticas, como remoção de conteúdos em “parcerias obrigatórias” com agências de fact-checking.
Esta ação, proposta junto com as ONGs Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro) e Instituto Fiscalização e Controle (IFC), foi motivada pelas respostas de Musk às repercussões do “Twitter Files Brazil”, que revelou que o Judiciário brasileiro tem descumprido a lei ao forçar o X a censurar usuários e entregar dados seus em desconformidade com o Marco Civil da Internet.
A Educafro é uma organização que oferece bolsas de estudos para jovens negros de baixa renda. Conforme apuração do jornalista Felipe Moura Brasil, em 2014, a Educafro ameaçou multar e tirar a bolsa de estudantes que não coletassem assinaturas para um projeto do Partido dos Trabalhadores (PT) que buscava uma reforma política através de uma constituinte exclusiva. Em resposta oficial à época, a Educafro não negou a acusação. O dirigente da entidade, Frei David, é um conhecido apoiador de Lula e do PT.
Especialistas afirmam que as indenizações por danos morais são altamente subjetivas e não possuem limites claros. Além disso, as regras atuais incentivam pedidos de indenizações exorbitantes. Isto possibilita o surgimento de uma “indústria dos direitos civis", que pode promover ideologias através de financiamento forçado de entidades progressistas. Este fenômeno que ocorre no Brasil seria semelhante ao que ocorre de forma mais avançada nos EUA.
Ações milionárias
Nos últimos anos, ações milionárias que pleiteiam indenizações por “danos morais coletivos” estão cada vez mais frequentes e constantemente se voltam contra figuras proeminentes e empresas por supostos danos causados a grupos sociais abstratos.
O dano moral coletivo é definido pelo STJ como uma “violação injusta e intolerável de valores fundamentais” de “grupos, classes ou categorias de pessoas”, que não necessariamente requer a demonstração de prejuízos concretos. A Educafro é campeã deste tipo de pedido e já propôs diversas ações, cujos valores já somam mais de 1,3 bilhões de reais. Um dos advogados da entidade, Márlon Reis, reconhece, com orgulho: “nós abrimos esse universo das ações coletivas”.
Em 2021, a Educafro, em parceria com a Associação Visibilidade Feminina e Centro Santos Dias de Direitos Humanos, entrou com ação civil pública pedindo indenização de R$ 10 milhões das empresas de investimentos Ável e XP. O motivo? A primeira havia sido cancelada na internet após publicar uma foto no LinkedIn de sua equipe “predominantemente branca e masculina”. Em meio à comoção nacional nas redes, poucos se atentaram para o fato de que a empresa era sediada no Rio Grande do Sul; conforme o censo de 2022, o estado mais branco do país.
Embora não houvesse no país nenhuma lei prevendo cota racial ou de gênero em empresas, as entidades alegaram que era de “se presumir o impacto emocional e econômico causado na coletividade de mulheres e negros do Brasil ao se deparar com as fotos”. O pedido de desculpas feito pelas empresas de nada adiantou; ao contrário, foi citado pela Educafro no processo como confissão. Apesar da ausência de base legal, a ação recebeu parecer favorável do Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul (MPT-RS).
A Educafro também iniciou ação por “dano moral coletivo” contra a grife Zara, acusada de usar um código para identificar a presença de negros e pobres em suas lojas; a entidade exigiu indenização de R$ 40 milhões. Em outro caso, após um homem negro ser obrigado a despir-se em uma loja da rede Assaí para provar que não havia furtado produtos, a Educafro pediu uma indenização de R$ 100 milhões.
A Educafro também entrou com ação contra Nelson Piquet, ex-piloto da Fórmula 1, por falas consideradas racistas contra o piloto inglês Lewis Hamilton, proferidas em um podcast. Piquet se referiu a Hamilton como “neguinho”. A ONG pediu R$ 10 milhões em indenização.
Em 2023, a Educafro processou o Estado da Bahia em R$ 143 milhões em danos morais coletivos, em reação ao homicídio de uma líder quilombola conhecida como Mãe Bernardete. Embora a polícia da Bahia tivesse concluído que o homicídio fora cometido por traficantes de drogas, motivados por conflitos de interesse com a vítima, e sem evidências de motivação racial, a Educafro, para embasar o seu pedido indenizatório em nome da população negra, atribuiu o homicídio ao “racismo estrutural”.
A família de Mãe Bernardete exigiu na justiça a exclusão da Educafro da ação, e chamou de “despautério” a entidade “explorar” a morte da sua familiar para fazer pedidos contra o Estado que, segundo eles, nada tinham a ver com as causas do homicídio.
Os pedidos incluíam a “adoção de parcerias com entidades do movimento negro”, a “contratação de empresa de consultoria externa” especializada em racismo estrutural e a exigência, em licitações, de que toda empresa privada também adotasse medidas análogas, vagamente chamadas de “medidas internas antirracistas”. Já no caso do Assaí, a Educafro demanda que a empresa destine 10% de seu lucro anual em em instituições negras de combate ao racismo, além da criação de programas de ações afirmativas.
Houve outras ocasiões em que a Educafro foi criticada ou enfrentou disputa pelos direitos resultantes do suposto dano moral coletivo. Em 2020, a Educafro processou a rede de supermercados Carrefour, após a morte do cliente João Alberto Freitas por seguranças do supermercado. A ação veio em um contexto marcado por protestos nos Estados Unidos após a morte de George Floyd, ampliando a comoção pública e a pressão por justiça. Em 2021, a Educafro, junto de outras entidades, assinou um TAC (termo de ajustamento de conduta) com o Carrefour no valor de R$ 115 milhões, sendo que a maior parte seria destinada a bolsas de estudo para pessoas negras. Como não houve acordo sobre os honorários, o caso continua na Justiça, com pedido de que sejam pagos até R$ 23 milhões aos advogados da Educafro, em razão do acordo. O valor corresponde a quatro vezes a soma das indenizações pagas aos familiares da vítima, que foi de R$ 5,2 milhões, segundo apuração do Portal UOL.
O acordo foi criticado por outros ativistas e entidades do movimento negro. A Coalizão Negra por Direitos (ente do qual a própria Educafro fazia parte) alegou que acordos do tipo “precificam a vida de pessoas negras”. Outras entidades chegaram a contestar juridicamente o acordo. Argumentaram que a busca por justiça social e a luta contra o racismo não podem ser “monopolizadas por pequenos grupos”: pediram que o dinheiro fosse redirecionado a um fundo público, onde passaria a ser acessível a um maior número de entidades, que o disputariam mediante edital público.
A indústria dos direitos civis
Marcelo Machado, doutor em direito processual e especialista em segurança jurídica, aponta riscos nas ações por dano moral coletivo, como as da Educafro. Segundo ele, uma associação privada tem pouco a perder se entrar com uma ação do tipo, porque a lei a dispensa de pagar qualquer valor em custas e honorários, mesmo se perder a ação. A exceção é em caso de “má-fé" ao processar, situação que, segundo Machado, é raramente concretizada, pela dificuldade de comprovação.
Por outro lado, em caso de vitória, a outra parte é obrigada a pagar honorários aos advogados da associação, segundo o STJ, e o valor pago é proporcional ao tamanho da indenização pedida. Essa assimetria cria um incentivo para que as associações peçam o maior valor possível. Essa tendência se agrava quando se trata de danos coletivos, porque o número de afetados pode ser indefinido; e, como explica Machado, os danos morais têm “uma enorme subjetividade” para serem quantificados. Isso contribui para o alto valor que tem sido visto nos pedidos, o que se traduz em grandes honorários para os advogados, dando margem para o que alguns críticos veem como uma indústria da litigância.
O comentarista político americano Richard Hanania descreve o mesmo fenômeno nos Estados Unidos (onde está mais avançado): fala na existência de uma “indústria dos direitos civis”. Em seu livro The Origins of Woke (em tradução livre, “As origens da lacração”), descreve essa indústria como uma “máquina autofinanciadora”, que criaria a própria demanda: é muito comum, nesse tipo de ação, que a condenação ou acordo inclua a estipulação de que a empresa financie ou contrate outras entidades progressistas.
Na leitura de Hanania, essas consultorias externas, treinamentos de pessoal e outros atividades de financiamento forçado serviriam para difundir ainda mais a ideologia progressista (inclusive teses heterodoxas como o “racismo estrutural”); o que, no longo prazo, acabaria ampliando a base de advogados, promotores e juízes adeptos da ideologia que sustenta esse tipo de ação e condenação, retroalimentando a máquina.
Uma crítica de Hanania é que esses agentes públicos progressistas estariam usando seus cargos para impor sua ideologia à sociedade sem transparência. Na prática, os comportamentos passariam a ser proibidos ou permitidos conforme a agenda progressista, driblando a necessidade de se aprovar lei no Congresso, onde a ideologia progressista sempre enfrentou mais resistência.
Marcelo Machado, embora sem fazer referência a ideologias específicas, enxerga um fenômeno parecido no Brasil: lamenta que “cada vez as pessoas têm menos comprometimento em seguir a legalidade” e fala em “usurpação” do Poder Legislativo.
Para onde vai o dinheiro?
A lei prevê que o dinheiro arrecadado com indenizações por dano moral coletivo deve ir para fundos especiais, chamados de Fundos de Defesa de Direitos Difusos (FDD), geridos por conselhos, cujos membros definem como o dinheiro será usado. A composição desses conselhos, e o consequente equilíbrio de forças na destinação dos recursos, varia conforme as unidades da federação – geralmente incluindo o Ministério Público e membros de entidades da sociedade civil.
Na esfera federal, os conselhos gestores são vinculados ao governo, que também indica a maioria dos membros. Essa composição gera o risco natural de politização da destinação dos recursos.
Hanania afirma que um fenômeno do gênero ocorre nos Estados Unidos: acusa o governo Obama de ter realizado acordos processuais com empresas, como condição para deixarem de ser propostas ações de direitos civis, que envolviam essas empresas transferirem recursos para grupos ativistas de esquerda. Para Hanania, isso se traduz em “repasse de verbas para aliados políticos do governo sem ter que passar pelo Congresso”.
Financiamento de ativistas
Há sinais de fenômeno similar no Brasil. No primeiro ano do atual governo Lula, foram repassados R$ 2 milhões ao NetLab, grupo ligado à faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que anuncia, entre suas linhas de pesquisa, “extrema-direita, política e desinformação”. O grupo esclarece que estuda a “produção e compartilhamento de informações tendenciosas que beneficiam os interesses financeiros e políticos da extrema-direita brasileira”.
Tomaz Carvalho de Miranda, diretor do Departamento de Projetos e de Políticas de Direitos Coletivos e Difusos (DPPDD) da Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor), justificou o financiamento dizendo que o grupo iria “produzir relatórios” que ajudariam o governo “no enfrentamento à desinformação das redes sociais”.
Na realidade, isso já aconteceu desde antes de a parceria ser formalizada: em 1º de maio de 2023, o NetLab divulgou um relatório acusando o Google de manipular resultados de busca para desfavorecer um projeto do governo, o PL 2.630/20 (“PL da Censura”). Apesar da superficialidade do relatório, que se baseava em poucos elementos além da constatação de que os primeiros resultados de busca eram contrários ao PL, o texto produziu graves consequências, com reação dos três poderes: o ministro Alexandre de Moraes, do STF, citando apenas o relatório e a repercussão dele na imprensa, ordenou a oitiva dos dirigentes da empresa em delegacia; no Executivo, a Senacon foi acionada para investigar o caso; e o presidente da Câmara dos Deputados entrou com notícia-crime contra os dirigentes do Google por crime de tentativa de abolição violenta do Estado democrático.
Quase um ano depois do relatório bombástico, em março de 2024, a Procuradoria-Geral da República (PGR) viria a pedir o arquivamento do inquérito contra os dirigentes do Google, apontando a fragilidade das provas e alegações jurídicas. Mas não antes que, em agosto de 2023, Senacon anunciasse parceria e a destinação, para o NetLab, de R$ 2 milhões, oriundos do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos. O NetLab também informa, em sua página, ser apoiado pela Fundação Ford e pela Open Society (organização fundada pelo bilionário George Soros). Além disso, informa “parceria institucional” (sem apoio financeiro) com o TSE e o Washington Brazil Office. (Até recentemente, o STF também aparecia nessa lista.)
Em 11 de dezembro de 2023, a conta da primeira-dama, Rosângela da Silva, conhecida como Janja, foi hackeada na rede social X, e o invasor, que manteve o controle durante pouco mais de uma hora, postou comentários ofensivos. Assim como no caso do Google, o caso chamou a atenção por mobilizar a cúpula do Estado à revelia da lei, com o caso sendo remetido diretamente ao ministro Alexandre de Moraes, do STF, que ordenou busca e apreensão, apesar da ausência de competência legal do STF para atuar em casos onde o presidente ou sua mulher fossem vítimas.
Após recuperar o controle da conta, a primeira-dama chamou as mensagens de “misóginas e violentas” e proclamou que “o ódio, a intolerância e a misoginia precisam ser combatidos”. Dias depois, em 16 de dezembro, a ministra das Mulheres do governo, Cida Gonçalves, publicou artigo na imprensa sobre o ocorrido e mencionou: “Por isso o Ministério das Mulheres estimula estudos e pesquisas sobre o tema; acabamos de firmar parceria com o NetLab/UFRJ [...], que analisará o ecossistema da misoginia nas redes[...], além da identificação de múltiplos golpes e fraudes direcionados a mulheres”. Foi firmada uma parceria de R$ 300 mil, segundo a página do próprio Ministério.
O NetLab voltou a atuar contra alvos circunstanciais do governo Lula e do STF em abril de 2024, quando divulgou levantamento afirmando que o engajamento em apoio a Elon Musk, no embate contra o ministro Alexandre de Moraes, tinha maior proporção de contas robôs do que o lado adversário do debate (47,97% contra 35,58%). A fundadora e coordenadora do NetLab, Marie Santini, ouvida pelo jornal O Globo, acusou Musk de estar usando deliberadamente a plataforma “para anabolizar o debate” em seu favor – justamente a acusação antes feita contra o Google. O que dizem os envolvidos
Entramos em contato com os envolvidos, mas até o presente momento não recebemos resposta. Nossa equipe permanecerá à disposição para quaisquer esclarecimentos e atualizaremos a matéria assim que recebermos as respectivas informações.
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